Sociedade

Março e luta das mulheres

As mulheres do meu tempo

Cresci rodeada de mulheres que passaram a vida a fazer o que me diziam ser coisas de mulheres. Fui levada por elas para os lugares que eram seus e que passaram a ser meus. Chamava-as e ouvia chamá-las pelos papéis – a mãe, a tia, a avó, a vizinha – e pelos ofícios – a professora, a educadora, a costureira, a mulher do pão, a mulher do peixe, a mulher dos frangos, a mulher da fruta. Quando não podiam fazer o que tinha de ser feito, eram substituídas por outras.

Maria Lamas

“Olhei à minha volta e comecei a reparar nas outras mulheres”

Maria Lamas in As Mulheres do Meu País

Cresci em redes de solidariedade informal, familiar, feminina, com marcada divisão sexual do trabalho. Se eu olhasse à minha volta, só podia reparar nas outras mulheres! A minha investigação resulta do cruzamento desses alicerces pessoais e afetivos com a pertinência científica do meu tema, a viuvez feminina. Se esse ‘atentar’ é o gesto inicial deste trabalho sobre mulheres, velhas e viúvas, a lacuna de conhecimento sobre as suas experiências é o combustível. 

Através de entrevistas, tento revelar e discutir aquilo que Maria Lamas registou em fotografias há mais de 50 anos: as experiências das mulheres, as suas relações sociais e o seu papel na produção e reprodução social. As mulheres entrevistadas no meu estudo nasceram entre a década de 30 e a década de 60 do século passado. Abrigá-las num mesmo grupo etário é uma categorização útil em termos demográficos e metodológicos. No entanto, assim que acedo aos seus percursos de vida, percebo que coberto pela categoria +65 está um grupo de pessoas muito diverso, que nasceu, cresceu, viveu e vive num arco temporal muito vasto e acelerado em transformações sociais e culturais. São as mulheres do meu país, mas de que tempo?

Sobretudo a partir dos anos 60, e um pouco por toda a Europa, a produção sociológica começa a registar e discutir as inúmeras transformações do período pós segunda guerra mundial, com as teorias sociológicas da família a tratar mais especificamente as mudanças na estruturação das famílias e das relações familiares. Embora atrasado, porque refém de longos anos de ditadura, Portugal também integrou esse caminho no sentido da mudança social apontada para os países ocidentais, hoje consolidada no aumento das taxas de divórcio, a descida da natalidade e da nupcialidade, o adiamento do casamento e do primeiro filho, a perda da importância do casamento religioso. Estes comportamentos demográficos revelam-nos não só o sentido desse caminho percorrido nos últimos 50 anos, como também alterações ao nível dos valores que o orientam e sustentam. 

A difusão de ideias como a liberdade, autonomia e igualdade de oportunidades no monopólio imaginário e discursivo coletivo teve, de facto, consequências no estatuto social das mulheres, alastrando-se até ao seio familiar.

Num nível simbólico, ganharam centralidade na discussão as mudanças nos papéis de género, apesar de lentas e ainda hoje marcadas por um desfasamento entre valores e práticas, assim como entre direitos formais e reais. A difusão de ideias como a liberdade, autonomia e igualdade de oportunidades no monopólio imaginário e discursivo coletivo teve, de facto, consequências no estatuto social das mulheres, alastrando-se até ao seio familiar. Aí, podemos pelo menos encontrar a tradução dessas ideias em algumas reformas jurídicas – não é o mesmo que encontrar a sua incorporação na vida das pessoas –, como o reconhecimento da igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres enquanto cônjuges, enquanto pais e mães e os seus respetivos papéis na família e a reposição do direito ao divórcio, com o casamento católico sujeito à lei do Estado e não à lei da Igreja. A abertura da vida familiar com a emergência de novas configurações familiares, e a transferência para a vida privada de ideias como a igualdade de oportunidades e de maior autonomia, realização e liberdade pessoal – significativamente associadas à inserção das mulheres no mercado de trabalho formal – é hoje identificada em inúmeros trabalhos. Mostram como as mudanças que se deram nos anos 60 em diversos domínios da vida social se fizeram sentir, particularmente, no seio das famílias, na vida privada e na vida em casal. No entanto, a coexistência dessas mudanças com a persistência de práticas e valores ‘antigos’ evidenciam como há mais uma diversificação dos modelos familiares e menos uma rutura com os modelos mais tradicionais. 

Os discursos das mulheres que entrevistei mostram como é incorporada na sua vida íntima e familiar essa relação dialética entre passado e presente, com efeitos complexos e, até, contraditórios. Essas transformações sociais, apesar de não discutidas diretamente, são identificadas pelas entrevistadas e atravessam as suas narrativas com referências ao passado, seja o mais longínquo da infância, seja o mais recente da vida conjugal, constantemente feitas com recurso à expressão ‘outro tempo’, uma expressão que não se limita a referir apenas a passagem do tempo. ‘Naquela época’, ‘antigamente era assim’, ‘não era como agora’, ‘nessa altura era o normal’ revelam como todas reconhecem a existência de transformações nos contextos em que se inserem. 

A maior parte dos seus percursos de vida são caracterizados pelo abandono escolar para cuidar dos irmãos, pela mudança de local de residência para acompanhar os maridos no percurso profissional ou pela interrupção ou abandono das suas trajetórias profissionais para cuidar dos maridos e dos netos. É raro o percurso que não tenha um destes movimentos, que revelam como as trajetórias de vida se constituíram orientadas para os outros. Na maior parte das vezes, essas decisões e esses momentos não são narrados com ressentimento, pelo contrário. São discursos de aceitação, enquadrados no âmbito das obrigações familiares, quase nunca colocadas em causa. Isto não quer dizer que não constatem a dureza do trabalho de cuidado e as dificuldades na alteração das rotinas. 

A maior parte dos seus percursos de vida são caracterizados pelo abandono escolar para cuidar dos irmãos, pela mudança de local de residência para acompanhar os maridos no percurso profissional ou pela interrupção ou abandono das suas trajetórias profissionais para cuidar dos maridos e dos netos.

Em diferentes momentos perguntei se gostariam que as suas vidas fossem diferentes. Deparei-me com uma relação de aceitação e de não arrependimento com essas trajetórias que consideram ser ‘normais’ e que não são questionadas, mesmo reconhecendo atualmente a existência de outras dinâmicas na vida em casal que se traduzem, nas suas opiniões, em menos obrigações para as mulheres – por comparação com as suas obrigações ‘naquele tempo’. Algumas entrevistadas mantêm essa resposta, mesmo admitindo que hoje ‘a vida’ é diferente e que, pelas lentes da atualidade, a vida que viveram dificilmente poderia ser considerada ‘boa’. O que as mulheres entrevistadas contam sobre a sua trajetória conjugal e familiar é que princípios como a realização pessoal, o bem-estar individual e a autonomia não tomaram o lugar de protagonismo das obrigações, necessidades e relações familiares. E revelam também como, não se arrependendo, ainda valorizam esse modelo mais próximo do tradicional, rejeitando aquele apontado nas sociedades contemporâneas como mais democrático. 

No entanto, quando enunciam o que desejam e rejeitam para o seu futuro – sobretudo no que diz respeito à dimensão amorosa das suas vidas – afirmam que uma das razões para a recusa da possibilidade de um novo relacionamento amoroso passa por não desejarem para si relações que as remetam novamente para a esfera do trabalho doméstico e de cuidado. Mesmo as entrevistadas que dizem aceitar a possibilidade de um novo relacionamento amoroso não deixam de salvaguardar condições que vão no sentido da recusa da perda de autonomia e liberdade individual. Dizem não estar agora dispostas a abdicar dos seus interesses, vontades e desejos pessoais a favor de obrigações e destapam, assim, um rompimento com a experiência vivida (passado). Ao aceder a essa experiência desejada e imaginada (futuro), manifestam como afinal refletem sobre outras configurações, normas e regras da vida conjugal e íntima que rompem com o modelo daquelas vividas. 

Tomelloso (Ciudad Real), Ramón Masats, 1960. ARCHIVO RAMÓN MASATS

Sobre os filhos e os netos, manifestam outras expectativas e exigências aplicados à vida conjugal e familiar ao expor diferentes formas de pensar e agir, por exemplo, em relação às novas configurações familiares dos filhos, como se nesses momentos mobilizassem recursos de um quadro de valores diferentes. Mostram como visões diferentes e não convergentes podem ser mobilizadas para responder a cenários/questões diferentes. A ausência de arrependimento em relação a acontecimentos da experiência pessoal não significa que mais tarde – no dia-a-dia, hoje ou amanhã ou depois – os princípios orientadores dessas decisões no passado não venham a ser repensados, à luz das configurações atuais e transformadas dos contextos em se inserem.

É também através do que dizem direta ou indiretamente sobre os seus filhos que se percebe que os percursos dos seus descendentes são em regra geral mais qualificados, mais especializados e mais aprofundados do que os seus. Entre esses descendentes, sobressaem as mulheres que quebraram com as trajetórias femininas de abandono do percurso profissional por causa do trabalho de cuidado, como as que as suas mães e sogras protagonizaram. No entanto, a rutura da predominância das obrigações familiares ou, pelo menos, do impacto das mesmas nas suas trajetórias está associada à transferência ascendentes dessas obrigações, precisamente, para as suas mães e sogras. As mulheres entrevistadas referiram não poucas vezes, utilizando diferentes formulações, o condicionamento das suas rotinas por tarefas associadas ao apoio que prestam aos filhos – sobretudo na preparação de refeições e no cuidado dos netos. 

As transformações dos contextos históricos são incorporadas nas experiências destas mulheres de forma complexa, não linear e imediata, o que explica o sentimento de ‘não pertencimento’ a um tempo presente, para a construção do qual contribuem ativamente e que, afinal, também é o delas!

A persistência em idade avançada do peso significativo das obrigações familiares na vida destas mulheres parece ser essencial para que os seus filhos tenham uma vida familiar e conjugal mais pautada pela realização pessoal e profissional e, assim, mais próxima das configurações familiares apontadas para as sociedades tidas como modernas. As mulheres manifestam apoiar as trajetórias dos seus filhos – em termos simbólicos e práticos –, que se desenvolvem com filhos/filhas e genros/noras igualmente investidos nas suas carreiras profissionais, aparentemente no sentido da maior igualdade entre os membros do casal dentro da configuração familiar – enquanto sustentam a responsabilidade que assumem na concretização das trajetórias dos seus filhos num quadro de valores que se insere numa visão mais tradicional – nomeadamente enquadrando esse trabalho de cuidado como uma obrigação que não equacionam recusar ou delegar.

As transformações dos contextos históricos são incorporadas nas experiências destas mulheres de forma complexa, não linear e imediata, o que explica o sentimento de ‘não pertencimento’ a um tempo presente, para a construção do qual contribuem ativamente e que, afinal, também é o delas! Perceber as diferentes formas como as pessoas incorporam as transformações sociais e históricas nas suas vidas, e as interdependências entre essas diferentes formas de ser e de estar, reforça a importância de uma sociologia capaz de olhar a organização e da mudança social ao nível das pessoas e da transformação das suas vidas. Esse olhar só é possível através da leitura da transformação social articulada com uma análise dialética da vida das pessoas – o quotidiano – ao longo do tempo – as trajetórias de vida. É essa a minha proposta para aceder à experiência das mulheres do meu país e do meu tempo!

Ana Rita Brás é Doutoranda em Sociologia na FEUC, onde desenvolve a investigação ‘Morte do cônjuge e redes relacionais: um estudo sobre a viuvez feminina’, financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e pelo Fundo Social Europeu (2020.05032.BD), com acolhimento no CES. Os seus interesses de investigação centram-se nos estudos sobre Mulheres, Famílias, Cuidado e Políticas Sociais.

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