Voz

Apoio Social

Envelhecer em tempos de pandemia

Processo de envelhecimento: uma construção social

Compreender o envelhecimento na época que atravessamos implica, antes de mais, perceber que envelhecer não é igual para todos, não é igual em todos os cantos do mundo, menos ainda em cada tempo histórico. Mesmo que passem os mesmos 70 anos.

Mais do que compreendermos que o envelhecimento diz respeito à passagem do tempo sobre os nossos órgãos biológicos, ele diz respeito, antes de mais, àquilo que são as nossas crenças, a nossa linguagem acerca do que é ser velho, e também, por outro lado, àquilo que são as condições de vida que temos disponíveis para envelhecer – seja o tamanho da pensão, o acesso a uma alimentação saudável, a cuidados de saúde física e mental ou, tão importante nesta altura, até mesmo ao desenvolvimento tecnológico.

Se é muito fácil compreender que nos desenvolvemos desde que nascemos até à idade adulta, a partir de então a crença que prevalece é a de que estagnamos. É como se, chegados ao ponto de produtividade máxima, a vida apenas decaísse. Nada disto é verdade, é o que nos diz a ciência mas também os exemplos que vamos conhecendo em redor. O papel cívico e político dos milhares que diariamente lutam por uma velhice mais digna, que se assumem enquanto rede essencial de suporte familiar, ou que dão corpo a parte tão significativa do nosso movimento associativo, é isso que nos mostra: nós desenvolvemo-nos do primeiro ao último dia de vida, nós somos agentes ativos na nossa vida do primeiro ao último dia. Se as condições do contexto em que vivemos influenciam o nosso desenvolvimento e o nosso envelhecimento, nós também influenciamos essas mesmas condições. Esse é o papel que não podemos deixar que nos anulem nunca. Tenhamos 20, 50 ou 80 anos.

Mais velhos, mais diferentes

E se nos desenvolvemos do primeiro ao último dia de vida, há outra noção que é muito importante que tenhamos: quanto mais tempo passa, mais diferentes nos tornamos. Não é possível catalogar pessoas qualquer que seja a condição. As crianças não são todas iguais, as mulheres não são todas iguais e os mais velhos também não. Com ou sem COVID-19, cada um desfrui das suas características, necessidades e capacidades.

A população idosa com a qual intervém A Voz do Operário é dessa diferença exemplo. Desde aqueles que recebem as suas refeições a partir do Refeitório Social, devido às pensões que não cobrem tantas vezes a renda da habitação; aos que frequentam o Centro de Convívio, no qual promovem as suas relações sociais e o seu desenvolvimento diariamente; passando pelos que integram o Serviço de Apoio Domiciliário, no qual o auxílio prestado pode assumir diversas formas… todos são diferentes. A própria diferença entre estas respostas sociais já nos faz perceber a variedade de pessoas que, coincidentes na faixa etária, estabelecem uma relação com a Voz do Operário que é sempre única.

Da unicidade à autodeterminação

O tempo atual avivou preconceitos e, acima de tudo, parece ter trazido – ainda mais – o direito a decidir pelos mais velhos. Estávamos no início de Abril quando a Presidente da Comissão Europeia defendeu o isolamento da população idosa até ao final do ano, ideia prontamente subscrita pelo nosso Governo.

A velhice é automaticamente equiparada a vulnerabilidade e dependência e, ignorando-se a heterogeneidade de todos os que já completaram 65 anos, a ordem é de clausura. Para estes milhares de homens e mulheres é como se não existisse capacidade de escolha, de tomada de decisões, autonomia e autodeterminação.

Este impedimento de acesso ao mundo exterior não deixa de ser irónico. Mandamos isolar toda a nossa população idosa enquanto continuamos a deixar à mercê da vontade das instituições locais e da disponibilidade da Segurança Social se esta se encontra abrangida, ou não, por um Serviço de Apoio Domiciliário que lhe permita, no mínimo, continuar a alimentar-se. Mandamos isolar toda a nossa população idosa quando o Serviço Nacional de Saúde garante dois psicólogos e meio por cada 100 mil habitantes. Anular a vida de alguém parece fácil quando ninguém parece muito preocupado sobre os efeitos que já se vêm sentindo e menos ainda com aqueles que nos aguardam no futuro.

A face paternalista do idadismo

A definição da COVID-19 como “um problema dos idosos” resultou em medidas mais restritas para esta população um pouco por todo o mundo. O isolamento social e as suas consequências para a saúde física e mental – ansiedade, depressão, doença cardíaca, entre mais – que já se faziam sentir antes da pandemia vieram, assim, exacerbar-se. Por detrás de um objetivo protetor, estas medidas resultaram em discursos condescendentes que vêm retratando os mais velhos como “os mais vulneráveis” da sociedade.

Esta equiparação da velhice a vulnerabilidade e dependência resulta em danos significativos naquilo que são as perceções e crenças acerca do próprio processo de envelhecimento, referidas inicialmente, acentuando o fosso entre as diferentes gerações. A comunicação separatória de “nós, jovens vs. eles, velhos” divide a sociedade e tem um impacto negativo na relação entre todos os seus membros. A este facto, junta-se o uso generalizado do termo “distanciamento social”, quando este não deveria ser mais do que físico. Para nossa segurança, o contato físico deve ser mínimo, no entanto, o contato social deve ser até fortalecido.

Durante a pandemia os discursos negativos e de desvalorização dos mais velhos têm complicado a vivência desta população, contribuindo para sentimentos de inutilidade e onerosidade. Estes fatores, aliados às atuais restrições sociais, afetam a saúde e bem-estar dos idosos, uma vez que uma perceção negativa acerca do envelhecimento conduz a um maior risco de desenvolvimento de problemas de saúde física e mental.

Com ou sem pandemia, os direitos da pessoa idosa não podem ser comprometidos e os direitos humanos não podem ser diferencialmente garantidos com base na idade cronológica.

Artigos Relacionados