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João Maria dos Anjos, um expoente do fado operário

No primeiro quartel do século XX, floresceu em Lisboa o fado operário.

Cronologicamente, coincidiu em grande medida com a 1ª República, mas será um equívoco chamá-lo “fado republicano”, pois na sua expressão política assumiu uma identidade de classe e um conteúdo ideológico claramente distintos e distantes desse regime.

A biografia do fadista João Maria dos Anjos será uma boa janela de observação para essa história. Nasceu em 1891, em Lisboa, e faleceu em 1956. Aos 15 anos de idade tornou-se operário nas oficinas da Imprensa Nacional.

Imprensa Nacional de Lisboa

Ali trabalharam figuras como José Nobre França (tradutor da primeira edição portuguesa do Manifesto Comunista de Marx e Engels, em 1873), Francisco Cristo e Raul Neves Dias (dois dos principais fundadores do jornal A Batalha, em 1919) ou José Maria Gonçalves (um dos primeiros dirigentes do Partido Comunista Português, em 1921).

O antigo movimento sindical e operário teve uma importante vertente cultural, particularmente no teatro amador, e com muitos militantes a dedicarem-se à música, à poesia e a associações populares de cariz cultural e recreativo – além de fundarem escolas.

Também neste campo se salientaram operários da Imprensa Nacional, nomes como Ernesto da Silva (dramaturgo, autor de uma peça intitulada O Capital), Norberto de Araújo (que se tornou um prestigiado jornalista e historiador de Lisboa) ou Manuel Petronila (guitarrista de fado, presidente da Sociedade Filarmónica“Alunos de Apolo” e cunhado de João Maria dos Anjos).

Neste contexto se desenvolveu o fado operário. Como divertimento, como meio para expressar sentimentos e desabafos, e também como “um meio excelente de propaganda para os grandes e nobres ideais”, como diria o destacado anarco-sindicalista Artur Inês [Guitarra de Portugal, 06/05/1924, p.1]

Além de festas e convívios na cidade, de passeios e piqueniques pelas hortas que rodeavam Lisboa, o fado operário animou também iniciativas sindicais e políticas. E teve um epicentro aqui, n’A Voz do Operário.

A Voz do Operário

A Voz do Operário teve um papel muito importante desde logo com o seu jornal: foi a vanguarda na defesa do valor cultural do fado, nomeadamente com os artigos do principal porta-voz dessa causa: Avelino de Sousa. Publicou além disso muitas poesias e letras de alguns dos mais salientes autores, com destaque para dois que até trabalhavam n’A Voz do Operário: João Black (como tipógrafo e bibliotecário) e Augusto de Sousa (que chefiou a tipografia). Aqui se abriu caminho para que se desenvolvesse a imprensa especializada de fado. Depois, o edifício sede tornou-se um espaço privilegiado para espetáculos.

Neste contexto se afirmou João Maria dos Anjos como cantador, que também era autor das letras de muitos dos fados a que deu voz. Foi um fadista amador. A sua vida era o seu trabalho na Imprensa Nacional. Mas o seu valor ficou reconhecido, por exemplo, nas Festas do Fado que se realizaram no Teatro S. Luís (em 1924 e 1925), onde partilhou o palco com Alfredo Marceneiro e António Botto (este poeta também cantava o fado). Em 1948, uma homenagem realizada no Salão Júlia Mendes, do Parque Mayer, consagrou João Maria dos Anjos como “um dos mais antigos e representativos cantadores de fado”. [República, 18/04/1948, p.2]

Partido Socialista Português

Focando o seu lado de ‘cantador de intervenção’, João Maria dos Anjos esteve ligado ao antigo Partido Socialista Português, de cariz operário e marxista. Foi também esse o caso, entre outros, dos já referidos Manuel Petrolina, Avelino de Sousa, João Black e Augusto de Sousa.

Um exemplo ilustrativo será uma festa-convívio que se realizou numa casa de pasto dos Olivais, em 1916. Foi presidida pelo então redator de A Voz do Operário, José Fernandes Alves. Aí cantou João Maria dos Anjos o fado (com letra de Augusto de Sousa) que acompanha este artigo. Longe de ser dos mais radicais, mostra um pouco da identidade (da classe trabalhadora) e do conteúdo ideológico (de cariz socialista) que distinguem o Fado Operário face à 1ª República.

Socializar as riquezas
ciências e autoridades
são belas aspirações
da futura sociedade

A burguesia que sente
crescer a onda macabra
força o Estado a que não abra
o dique à torva corrente.
E o Estado, então, conivente

nessas e noutras torpezas,
fere as classes indefesas,
que o Capital escraviza,
porque arvoram a divisa:
socializar as riquezas.

Quando Moisés, no Egito,
chama os homens à revolta,
no lábaro que ao vento solta,

traz esse dilema inscrito,
já Platão, com o mesmo fito,
frizou dos bens a igualdade,
e assim, desde a antiguidade,
o operário lutado tem
para socializar também
Ciências e Autoridade.

E acabar com os preconceitos,
vergonhosos precipícios,
fonte de todos os vícios,
misérias e mais defeitos.
Fixados iguais direitos
e deveres às gerações,
querer depois que as convenções
impostas pelo despotismo
cedam passo ao Socialismo…
São belas aspirações.

Mas a conceção pasmosa
dos sábios positivistas
veio indicar aos artistas,
a revolução silenciosa.
Se a guerra foi desastrosa
nos tempos da crueldade
hoje que a ciência invade
os proletários redutos,
hão-de em paz colher os frutos
da Futura Sociedade.

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