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Memória

A Voz do Operário sob a ditadura: foi gerida por direções eleitas

É um facto amplamente documentado, em diferentes fontes que são do domínio público.

A começar pelas atas da assembleia geral, passando pela coleção do jornal A Voz do Operário e por noticiário publicado à época noutros jornais, nomeadamente na imprensa diária de Lisboa.

Falamos do facto de que, durante a ditadura, a sociedade A Voz do Operário continuou a ser gerida por direções eleitas pelos seus sócios. À semelhança de outras associações devotadas ao ensino, como, por exemplo, os centros escolares republicanos.

Muitas vezes se elegeram conhecidos antifascistas. E vários deles foram presos políticos.

Raul Esteves dos Santos

Aliás, chegou a acontecer a PIDE prender o presidente em funções da direção da sociedade A Voz do Operário.

Foi no dia 16 de Maio de 1947. Era Raul Esteves dos Santos [Arquivo da PIDE/DGS, Registo Geral de Presos, Livro 88, nº17592].

Mais tarde, entre 1949 e 1953, o presidente da direção foi Domingos Cruz. Um ex-preso político que tinha estado deportado em Cabo Verde.

E houve outros membros da direção da A Voz do Operário que foram presos pela PIDE, como Júlio Ferreira de Matos e Amílcar Costa.

Se percorrermos a composição dos vários órgãos eleitos desta coletividade, a lista torna-se mais extensa. Só entre os presidentes da assembleia geral houve mais três presos políticos antifascistas: Júlio Luís, Alfredo Guisado e Alberto Monteiro. Este último foi mesmo um caso paradigmático.

Alberto Monteiro

Antigo dirigente do PCP e ex-secretário-geral da União de Sindicatos Operários de Lisboa (no tempo da 1ª República), Alberto Monteiro foi presidente da assembleia geral e do conselho fiscal da A Voz do Operário nos anos quarenta. Depois de ter passado a década de trinta a ser preso político: em 1931, em 1934, em 1935 e 1937. Esteve então encarcerado no Aljube, em Caxias, em Peniche e deportado em Timor.

Muito dinheiro

Parece estranho? Que a ditadura tenha tolerado assim A Voz do Operário e outras associações democráticas devotadas ao ensino?

Para um regime que não queria investir na escola pública, tais associações tinham o seu lado conveniente. Poupavam muito dinheiro aos cofres do Estado, com as escolas que conseguiam manter.

Isto chegou a ser admitido no próprio jornal oficioso da ditadura – o Diário da Manhã.

O argumento era que não havia recursos financeiros para o Estado “abrir o número de escolas suficiente para todas as crianças em idade escolar”. Além disso, defendia que “há serviços, sobretudo os da assistência escolar, que melhor confiados ficam à iniciativa particular do que ao Estado”.

Pelo que dava as “boas vindas” a ”todas as agremiações particulares que se dedicam à instrução ou a fins de assistência escolar”. E destacava mesmo o exemplo da “benemérita instituição” A Voz do Operário [Diário da Manhã, 11/09/1931, p.1].

Não é de estranhar. Na altura, A Voz do Operário tinha uma população escolar anual superior a três mil alunos (do 1º ciclo). Poupava muito dinheiro ao Estado…

Ameaça de encerramento

Não foi uma tolerância pacífica. Desde logo pelos dirigentes associativos que foram presos políticos. Mas além disso, a ditadura impôs a coletividades como a Voz do Operário uma série de constrangimentos ao nível do conteúdo e dos métodos de ensino. Sob a ameaça de encerramento.

O «Estatuto do Ensino Particular», a partir de 1931, estabelecia (no seu artigo 5º) que era “rigorosamente proibido o ensino de doutrinas contrárias à independência e integridade da Pátria, ao respeito pelas tradições nacionais portuguesas, à segurança do Estado e à moral social”.

E com esse enunciado tão abrangente, determinava que “os estabelecimentos em que seja praticada contravenção das disposições deste artigo serão encerrados” [Diário do Governo (1ª série), de 11 de Dezembro de 1931, p.2688; e de 18 de julho de 1933, p.1397].

Escolas encerradas

Não foi apenas uma ameaça. Houve algumas escolas associativas que foram mesmo extintas, como aconteceu à «Universidade Livre de Lisboa» e à «Associação do Registo Civil e Livre Pensamento», ambas em 1937.

Sem esquecer o movimento sindical livre que a ditadura dissolveu no final de 1933.

Muitos dos antigos sindicatos mantinham escolas nas suas sedes. Aliás, entre as escolas da A Voz do Operário nessa altura, uma funcionava no sindicato dos metalúrgicos e outra no sindicato dos operários da construção civil.

25 de Abril

Antes da ditadura decretar o seu «Estatuto do Ensino Particular», A Voz do Operário tinha encetado uma reforma de modernização escolar. Contratou à época prestigiados pedagogos de ideias avançadas, entre os quais já se falava de “escola moderna”. Alguns deles também foram presos políticos, como os professores Adolfo Lima e Simões Raposo Junior.

Essa modernização foi abafada. E só viria a ser levada à prática na A Voz do Operário depois da ditadura ser derrubada, no dia 25 de abril de 1974…

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