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Habitação, um direito por cumprir

É em abril de 1974 que a resistência de quase meio século ao fascismo abre as portas da liberdade com uma revolução histórica. Para além da repressão e de graves limitações a direitos políticos, cerca de 48 anos de ditadura resultaram em atrasos sociais gritantes. Mulheres e homens partiram do interior para trabalhar onde havia indústria. À procura de uma vida melhor, a migração fez aumentar a carência habitacional. Cresceram zonas degradadas e bairros de lata. A revolução e a luta das populações abriu caminho à consagração do direito constitucional à habitação. A contra-revolução truncou essa viagem de sonhos e esperanças. Quase meio século depois, as reivindicações das gerações passadas são as reivindicações das gerações de hoje.

Quando se dá a revolução, havia um défice de 600 mil alojamentos num país com 8,6 milhões de habitantes. Destes, 25% vivia sem condições de habitabilidade. A maioria do país não tinha energia elétrica (53%), nem instalações sanitárias (67%), nem rede de esgotos (60%). Em 1970, de um total de 2,8 milhões de famílias, 35 mil viviam em barracas e 620 mil viviam em casas sobrelotadas. Cerca de 40% das habitações tinham mais de 50 anos.

Em 1974 e nos anos seguintes, chegaram 650 mil cidadãos das ex-colónias que foi necessárioque alojar e integrar. Um verdadeiro desafio para um processo revolucionário em que muitos apostavam por democratizar a economia e pô-la ao serviço dos trabalhadores e das populações.

Logo no dia 1 de maio desse mesmo ano, apenas seis dias depois do levantamento militar que derrubou a ditadura, várias famílias ocuparam prédios de habitação social em Chelas. No dia 9, constituída já uma comissão dos moradores do Bairro de Chelas, realiza-se uma manifestação junto ao Palácio de Belém para exigir à Junta de Salvação Nacional a legalização dessas ocupações. Em poucos dias, centenas de famílias ocupam fogos, para além de Chelas, no Monsanto, Marvila e Ajuda. São casas de habitação social vazias e prontas a habitar ainda sem atribuição.

É no dia 15 desse mês, na tomada de posse do I Governo Provisório, que o arquiteto Nuno Portas é nomeado secretário de Estado da Habitação e Urbanismo. A 31 de julho, é criado o Serviço de Apoio Ambulatório Local. “Em face das graves carências habitacionais, designadamente nas grandes aglomerações, aliadas às dificuldades em fazer arrancar programas de construção convencional a curto prazo – na medida em que estes programas supõem terrenos preparados, projectos e preparação de concursos e garantia de disponibilidade financeira por parte do Estado ou autarquias locais –, está o Fundo de Fomento da Habitação a organizar um corpo técnico especializado, designado ‘Serviço de Apoio Ambulatório Local’ (SAAL), para apoiar, através das câmaras municipais, iniciativas de populações mal alojadas no sentido de colaborarem na transformação dos próprios bairros, investindo os próprios recursos latentes e, eventualmente, monetários”, estabelecia o primeiro ponto do despacho.

Num artigo publicado no AbrilAbril, o coronel Baptista Alves, diretor do SAAL a partir de julho de 1975, explicou que nesse ano “as associações de moradores, figura jurídica de organização das populações apoiadas pelo SAAL com expressão dominante, e cooperativas, estavam espalhadas um pouco por todo o país”. Baptista Alves revelou números impressionantes de participação. Houve 41.665 famílias envolvidas neste curto mas intenso período da história portuguesa num processo que desencadeou “a participação democrática das populações organizadas e da interação criativa com as brigadas técnicas”.

Em 1976, quando entra em vigor a atual Constituição da República Portuguesa, há um conjunto de artigos que consagram os direitos conquistados pela luta dos trabalhadores e das populações. O direito à habitação passa a figurar nas páginas da Constituição e delibera que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. 

Este direito confere ao Estado o dever de o assegurar través de “planos de reordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social”, do incentivo e apoio a “iniciativas das comunidades locais e das populações tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e fomentar a autoconstrução e a criação de cooperativas de habitação” e através do estímulo à “construção privada, com subordinação aos interesses gerais”.

Grande motor de mobilização

“No Porto, há 12 casas desabitadas por cada família carenciada”, já passam 47 anos da revolução e o arquiteto Diogo Silva faz um retrato nada coincidente com o que foi consagrado na Constituição relativamente à habitação em 1976. Quem leia o documento e olhe para o país, pode achar que o texto constitucional não pode ser de Portugal. 

“A lei das rendas”, conhecida como Lei Cristas, e a “explosão do turismo” são alguns dos principais obstáculos apontados por Diogo Silva para a falta de acesso à habitação no Porto. Acusa a autarquia de destruir habitação social para a construção de novas zonas destinadas a camadas da população com melhores rendimentos e denuncia parcerias público-privadas para manutenção de bairros sociais em troca de terrenos para edificação de particulares tendo o negócio como objetivo.

Contudo, considera que a preocupação com este problema é cada vez maior. Contra a expulsão e deslocação de populações, são cada vez mais as organizações e movimentos que denunciam e lutam por mudanças na política de habitação. “Tem havido claramente uma consciência nesse sentido”, considera.

Olhando para o passado, o arquiteto considera que o SAAL teve uma importância central porque se viu o “grande motor da organização e mobilização das populações”. Dá o exemplo de São Pedro da Cova, onde não se construiu um bairro mas onde os moradores se organizaram para terem um centro comunitário e uma farmácia em terra de mineiros com problemas de saúde.

Promiscuidade obscena do Estado com a finança

“O Estado não assumiu, nos últimos trinta anos, o seu compromisso como executor e promotor direto de habitação pública. Remete-se para o papel de gestor ou auxiliador do mercado ou, quanto muito, fiscalizador. E nem sequer assume o papel de regulador, porque o mercado não está de todo regulado”, quem o diz é Luís Mendes. Investigador do Centro de Estudos Geográficos do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (CES/IGOT-UL) é muito crítico da situação atual. Houve várias estratégias aprovadas nos últimos anos por parte do governo e das autarquias mas considera que “todos os programas criados ao abrigo destes grandes documentos estratégicos não tiveram consecução prática”.

Para Luís Mendes, a política de habitação “está refém da lógica de mercado e da lógica da finança”. Os dados são impactantes. “Em Portugal, o mercado da habitação é profundamente privado, 98% da propriedade é privada, e esse é o grande problema. O mercado não consegue dar resposta a um problema que é eminentemente social e é um direito que está consagrado na constituição da República Portuguesa (CRP). Nós somos, de todos os países da Europa ou da União Europeia, aquele que está efetivamente na cauda do ponto de vista da habitação pública. A habitação continua a ser, enquanto direito consagrado na CRP, um direito que não é cumprido”.

Segundo o investigador, há 700 mil fogos devolutos, o que corresponde a 15% de todo o stock habitacional que existe no país. “Está vazio, não cumpre função social, nem cumpre uma função económica. O Estado deveria mobilizar este património, e ir buscá-lo ao privado”.

Como Diogo Silva, Luís Mendes olha para a Lei Cristas como uma bomba atómica. Uma criação neoliberal de uma forma de produzir cidade a que o investigador chama de “urbanismo austeritário”. E vai mais longe. “A austeridade não foi só económica e social, foi também no espaço urbano, na cidade. Este urbanismo austeritário, que foi muito alimentado pelo investimento estrangeiro, pelo programa dos Vistos Gold e dos residentes não habituais, que atraíram milhões e milhões de euros e injetaram esse capital estrangeiro no mercado de habitação e no stock habitacional, e patrimonial, com o único objetivo de reproduzir capital imobiliário e de gerar mais valia sem qualquer preocupação social, tudo isso, distorceu completamente o mercado de habitação”. 

O boom do turismo foi a cereja no topo do bolo. O investigador fala de turistificação do território, numa lógica “monofuncional” do turismo, do alojamento local e da financeirização do imobiliário e da habitação. “A habitação deixou de ser uma necessidade socialmente estabelecida e um direito básico, que é o que os movimentos sociais estão a tentar resgatar”, denuncia. “A habitação, sempre foi um bem mercantil, mas neste momento é, mais do que nunca, um bem hiper mercantilizado e é um ativo financeiro. As casas servem, não para habitar, mas para reproduzir capital e gerar lucro. Isto é o que acontece com esta injeção de capital estrangeiro”, explica.

Dar voz ao povo

Em Lisboa, como no Porto, o direito à habitação e à cidade tornaram-se reivindicações permanentes. Há comissões de moradores, associações, coletividades de defesa do direito à habitação e movimentos sociais urbanos que analisam, refletem e intervêm junto das populações e do poder político. Luís Mendes refere a Associação dos Inquilinos Lisbonenses (AIL) como tendo “um papel muito construtivo no sentido de ser propositivo e muito crítico do que acontece com a habitação”. Mas há uma diversidade de coletivos que olham de forma crítica para as contradições das cidades.

“O espaço, como nós o temos hoje, é produzido capitalisticamente, é a chamada produção capitalista do espaço e esses movimentos, para além de auxiliarem as populações que estão numa situação muito complicada de vulnerabilidade habitacional, trazem para a praça pública as contradições da produção capitalista do espaço”, descreve.

Não tem dúvidas de que estes movimentos levam “a cidadania participativa do povo e das populações à democracia participativa e reivindicam o dever que ela tem de proteger os direitos”. 

E recorda as lições da revolução de Abril: “o Estado social tem que ser reforçado. Não se consegue uma política pública de habitação, desde o planeamento à estratégia, execução e implementação sem haver um Estado social forte, não só construtor, mas regulador, que, inclusivamente, influencie a política de uso do solo”. Para Luís Mendes, a questão do direito à habitação tem muito que ver com a questão do acesso à propriedade e considera que aí o Estado, através do uso das mais valias, “tem um papel fundamental”. 

A segunda lição a reter, segundo o investigador, é “muito importante”. Entende que há que “dar voz aos movimentos, ao povo, às comissões de moradores e associações pelo direito à habitação, aos movimentos sociais urbanos, às lutas urbanas que se fazem na rua, e criar políticas de, com e para o povo”.

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