Sociedade

MARÇO E A LUTA DAS MULHERES

Uma em Cada Dez: (Des)Igualdade, Saúde e a Endometriose

A saúde é um direito fundamental e um elemento essencial do desenvolvimento e bem-estar de qualquer sociedade. Um serviço público de saúde vigoroso constitui garantia de cuidados universais e integrados (de promoção da saúde e prevenção da doença, diagnóstico, tratamento e reabilitação), atempados e acessíveis a todas as pessoas, independentemente da sua nacionalidade, religião, ideologia, etnia ou situação socioeconómica.

Estima-se que a endometriose afecte, pelo menos, uma em cada dez mulheres em idade fértil. Freepik

Mas o panorama português é preocupante. Em Portugal, um dos países da OCDE com menor número de anos de vida saudável depois dos 65 anos, o acesso a cuidados de saúde tem-se deteriorado nos últimos anos, fruto de desafios demográficos e epidemiológicos (o envelhecimento da população, o aumento de doenças crónicas e aumento da procura de cuidados), mas também da degradação do SNS, marcado por uma suborçamentação crónica, insatisfação crescente da sua força de trabalho e perda de profissionais para o sector privado. Daqui resultam respostas precárias (com pior qualidade e custos mais elevados) e o aprofundamento de desigualdades estruturais.  

A saúde é uma das dimensões onde a desigualdade de género em Portugal mais se reflecte.

A saúde é uma das dimensões onde a desigualdade de género em Portugal mais se reflecte. De acordo com um estudo recente da Medis, 53% das portuguesas tem, pelo menos, uma doença diagnosticada, 21% vive mesmo com mais de duas doenças e 16% tem um problema de saúde mental (os homens ficam-se pelos 50%, 11% e 6%, respectivamente). Acrescem disparidades gritantes no acesso à saúde, que afectam particularmente as mulheres, em especial as mais pobres ou pertencentes a minorias. Portugal surge na 23ª posição dos países da UE onde o acesso à saúde é mais desigual, com enormes consequências para as mulheres (diagnósticos tardios, tratamentos menos eficazes, mais problemas de saúde física e mental e redução da qualidade de vida) e para a sociedade (perda de produtividade, maiores custos e sobrecarga dos serviços).

Esta desigualdade é agravada pela falta de literacia em saúde (crucial para a prevenção e gestão de doenças e para a procura de cuidados adequados e de forma atempada) e pela desvalorização da saúde feminina pelo público e pela própria comunidade médica e científica, plasmada nas diferenças históricas na atenção e investimento dados a condições mais prevalentes ou exclusivas das mulheres – alguns tipos de cancro, doenças auto-imunes, condições ginecológicas, reprodutivas e de saúde materna, problemas da sexualidade feminina, a menopausa ou a endometriose.

A endometriose é um exemplo clássico de uma doença feminina absolutamente menosprezada, apesar de muito incapacitante: o seu estudo tem um atraso de 30 a 40 anos.

Descrita pela primeira vez no sex. XVII, a endometriose é um exemplo clássico de uma doença feminina absolutamente menosprezada, apesar de muito incapacitante: o seu estudo tem um atraso de 30 a 40 anos. É uma patologia crónica, de etiologia difusa, que resulta do migração de tecido do endométrio para outros órgãos (ovários e trompas, sistema urinário, trato gastrointestinal, cavidade torácica ou mesmo sistema nervoso central). Nesses órgãos, o tecido sofre mudanças idênticas às que ocorrem no útero durante o ciclo menstrual, que provocam dores muito intensas (cíclicas ou crónicas), irregularidades menstruais, fadiga crónica ou outros problemas que dependem da localização das lesões. Há maior probabilidade de outras doenças inflamatórias (como doença inflamatória intestinal e doença de Crohn) e problemas de saúde mental, que afectam mais de um terço das mulheres portadoras. A experiência de dor crónica pode ainda ter efeitos negativos na sexualidade (muitas vezes vivida com dor) e na capacidade de trabalhar ou de fazer exercício.

Estima-se que a endometriose afecte, pelo menos, uma em cada dez mulheres em idade fértil, das quais cerca de metade terá problemas de fertilidade. A doença é claramente subdiagnosticada, já que há uma tendência para normalizar a dor e mal-estar associados ao período menstrual. As que se queixam demasiado são estigmatizadas pelos próprios profissionais de saúde, são “demasiado sensíveis” à dor. A desvalorização dos sintomas e a falta de técnicas não invasivas de diagnóstico, a par do acesso difícil a consultas de especialidade, não ajuda. Mais de 40% das portuguesas com endometriose demora mais de 10 anos a ser diagnosticada, atraso que se traduz na evolução das lesões e num impacto crescente na saúde mental e na qualidade de vida. Eu fui diagnosticada com 41 anos de idade, depois de mais de 10 anos de queixas. O grande benefício do diagnóstico foi poder dizer que o tinha: Afinal, não estava louca.

Eu fui diagnosticada com 41 anos de idade, depois de mais de 10 anos de queixas. O grande benefício do diagnóstico foi poder dizer que o tinha: Afinal, não estava louca.

Uma vez diagnosticada, a doença exige uma intervenção personalizada e interdisciplinar ao longo da vida. O tratamento, podendo variar em função da localização e extensão das lesões, da intensidade da dor e do desejo de engravidar (as opções podem incluir medicação, terapia hormonal ou cirurgia), tem como objectivo o alívio dos sintomas, mas não a cura – já que a endometriose tem um carácter crónico e recorrente. Aproximadamente 10% a 25% das portadoras que pretendem engravidar necessitará ainda de técnicas de procriação medicamente assistida (pelo que o diagnóstico tardio pode ser um problema). Além disso, dado o grau de stress psicológico e problemas de saúde mental associados, a intervenção psicológica é recomendada (por exemplo, para uma melhor gestão da dor crónica).

Nos últimos anos, em parte graças aos testemunhos de figuras públicas, a visibilidade da endometriose tem vindo a aumentar, e com ela, a investigação sobre formas de melhorar o diagnóstico precoce, desenvolver terapêuticas menos invasivas e entender as causas subjacentes. Em França, estuda-se uma metodologia que permitirá o diagnóstico através de um teste de saliva. Uma equipa de investigadores escoceses está a desenvolver o primeiro tratamento não hormonal. E na Austrália foi já aprovado um medicamento (caro) que actua não apenas na dor, mas na progressão das lesões. O aumento do conhecimento sobre o problema tem também contribuído, a passo lento, para diminuir o estigma e facilitar a procura de ajuda.

Mas a estrada é longa. Em Portugal, onde existem cerca de 350 mil portadoras, a MulherEndo – Associação Portuguesa de Apoio a Mulheres com Endometriose tem lutado pela promoção do debate público e científico, realizando sessões de esclarecimento e formação e prestando apoio médico e psicológico. Mas o acesso ao diagnóstico permanece com enormes atrasos, no quadro de um SNS depauperado de profissionais e especialistas. O acesso a apoio psicológico é ainda mais difícil (existem pouco mais de 1000 psicólogos no SNS). Assim, muitas mulheres – as que podem – são obrigadas a recorrer ao privado para verem as suas queixas reconhecidas e acederem às terapêuticas necessárias. Depois do chumbo de diversos projectos de lei e projectos de resolução que propunham mais direitos laborais e assistenciais, a última legislatura limitou-se a instituir o Dia Nacional da Luta contra a Endometriose, a 1 de Março. Existem agora várias novas propostas “em cima da mesa”. Aguardemos, ansiosamente, o futuro.

Artigos Relacionados