Sociedade

Sexualidade

A violência sexual com base em imagens e os impactos da pornografia na juventude

Nos últimos anos, temos vindo a falar sobre o fenómeno da “pornografia de vingança”, particularmente entre a população jovem, que consiste sobretudo na partilha online não consentida de conteúdos íntimos, tipicamente de carácter sexualizado. Contudo, não conseguiremos entender o alcance deste fenómeno se não pararmos para reflectir de forma crítica sobre os impactos da pornografia na construção da sexualidade na juventude. A existência deste fenómeno depende, em grande parte, do conformismo para com a indústria pornográfica.

Pornografia de vingança” não é o termo justo para este fenómeno. Trata-se de violência sexual com recurso à utilização de imagens, daí as teóricas feministas terem cunhado a expressão “violência sexual com base em imagens” (VSBI). Em inglês “image based sexual abuse”. Chamar pornografia a uma expressão de violência sexual, que incide particularmente sobre mulheres e raparigas, é não assumir a componente de violência envolvida, mas remetê-la para o domínio do entretenimento sexual, maioritariamente masculino. Por outro lado, é aceitar que qualquer expressão de carácter íntimo, de sexualidade ou de nudez é pornográfica, já que a questão do consentimento ou de uma suposta liberdade para “fazer pornografia” nem sequer é equacionada. Deduziremos então que nudez é sexo, sexo é pornografia, pornografia é tudo o que se relacione com esta dimensão de intimidade e de sexualidade. Mas pornografia é muito mais do que isso. 

Existem visões diferentes sobre o que é a pornografia, mas há uma característica que as une: a pornografia é uma indústria que gera lucro através da comercialização de imagens cujo propósito é a excitação sexual do utilizador. A visão da qual partilhamos é de que a pornografia não é uma mera indústria “sem vítimas”, uma simples expressão comercial de actos sexuais gravados. É sim uma indústira multimilionária que assenta na exploração e na promoção da violência para com mulheres e raparigas, indo muito além de qualquer expressão de gratificação sexual. 

A generalidade da pornografia assenta na reprodução de actos sexuais, cuja dinâmica remete diretamente para a humilhação e submissão das mulheres e para o desejo de dominação masculina. Sem este tipo de conteúdo, muito dele já no âmbito da criminalidade, a pornografia não seria a indústria lucrativa que é. A indústria pornográfica não se limita a comercializar imagens de sexo, mas sim imagens de violência sexual para com mulheres, que é glamorizada e erotizada. Por isso, reforçamos a importância de diferenciar conceitos e de não ceder à tentação de caracterizar algo sexual logo como pornografia. Até porque não fizémos ainda enquanto sociedade uma reflexão conjunta e séria sobre esta indústria e a sua influência. Conformamo-nos com a sua existência.

Porque não poderemos também chamar “vingança” ao fenómeno da VSBI? Porque vingança é uma reacção mais ou menos legítima a uma injustiça ou a algo percepcionado como tal. O que sabemos sobre os agressores que partilham este tipo de conteúdo íntimo é que não o fazem, na sua grande maioria, por revanchismo, mas sim porque podem obter recompensas materiais – extorsão – ou imateriais – afirmação de masculinidade e de pertença à fratria ( a “comunidade dos irmãos”). Muitos deles nem conhecem pessoalmente as vítimas. A sociedade da fratria implica necessariamente a dominação e/ou a total exclusão das mulheres. A indústria da pornografia tem um papel central na construção de laços entre homens ao reforçar o papel de subordinação das mulheres.

Actualmente, uma parte dos e das jovens começa a consumir pornografia por volta dos 11 anos, que se vai intensificando à medida que crescem e têm acesso facilitado a conteúdos digitais. É nesta camada jovem que o fenómeno da violência sexual com base em imagens impera, não estando as escolas preparadas para abordar o fenómeno, e que visa sobretudo raparigas, até porque socialmente a sexualidade feminina continua a ser alvo de reprovação quando não condicente com alguns critérios socialmente definidos. 

A par disto, os e as jovens, cujo conhecimento sobre sexualidade é adquirido, em grande parte, através da indústria pornográfica (muito antes até de iniciarem a sua vida sexual), reproduzem na intimidade aquilo que consideram ser uma vivência desejável e expectável das relações sexuais imbuídas de violência masculina e que legitimam e normalizam a humilhação e dominação das mulheres, relegando-as à condição de seres desprovidos de desejo próprio e somente de destinatárias e serventes do desejo de outrém. No nosso contacto com jovens, o que tem ficado claro é que rapazes e raparigas acreditam que a sexualidade cumpre diferentes funções para elas e eles, e que raparigas jovens consentem em actos abusivos ou mesmo violentos porque é assim que deve ser, é a ordem natural.

No momento histórico em que nos encontramos, não é viável ver na proibição do acesso à pornografia uma solução para a sua crescente influência negativa entre a população jovem, mas é possível contextualizar e deslegitimá-la. Para isso, a Educação Sexual nas escolas tem de abandonar a perspectiva biomédica e centrar-se nas relações de poder entre os sexos e na vivência saudável dos afectos e da sexualidade que privilegie a autodeterminação, o prazer mútuo, o consentimento e a não instrumentalização de outrém para gratificação sexual. Isto implica falar abertamente de sexo e de prazer com os e as jovens, colocar de lado os tabus relativamente a algumas práticas sexuais, não implicando necessariamente a sua normalização, e garantir que as relações sexuais são percepcionadas como uma componente natural da vida humana e que, para além do mais, a elevam e edificam.

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