Educação

Educação

Horários: as angústias no início de cada ano letivo

Entre a jornada escolar dos nossos filhos e a nossa jornada de trabalho contamos os minutos do tempo passado em família.

Há muito que vivemos controlados pelo relógio, pelos calendários. Toda a nossa actividade humana decorre num contexto temporal e espacial, dimensões essas que, segundo Kant, e não querendo filosofar muito sobre o assunto, sendo categorias vazias, se tornam “contextos” para a nossa ordenação da realidade, para a nossa configuração do mundo, para a construção da nossa vida em sociedade. Como professora e como mãe, cada ano que passa é um desafio e uma luta para encontrar equilíbrio temporal e espacial na conciliação entre os horários impostos e uma vida familiar saudável e dedicada ao crescimento de um filho, enquanto somos fundamentais para o seu desenvolvimento e referências na sua construção da personalidade e visão do mundo.

Mas vamos a factos. De acordo com dados da Eurostat relativos a 2022, os trabalhadores portugueses têm uma carga horária média de 39,5 horas por semana, acima da média europeia, 37,1 horas/semana, registando ainda uma das percentagens mais altas de trabalhadores por conta de outrem a trabalharem mais de 40 horas por semana, 9,4% que corresponde a 442 mil pessoas com um horário semanal de trabalho a rondar as 49 horas. Contudo, este panorama de sobrecarga horária laboral não é sinónimo de enorme produtividade, bem pelo contrário. Portugal aparece como o sexto país com os índices produtivos mais baixos da UE, numa lista encabeçada pela Irlanda, que apresenta um nível de produtividade 3 vezes superior ao nosso e onde se trabalha menos 3 horas por semana, ou os Países Baixos, com uma média de 30,4 horas de trabalho por semana. 

Por outro lado, no que respeita à carga horária lectiva, no último estudo publicado pelo Conselho Nacional de Educação, em 2014, conclui-se que em Portugal as crianças do 1º e 2º ciclos, entre os 6 e os 11 anos, têm 822 horas lectivas obrigatórias por ano, cerca de 25 horas por semana, mais do que a média dos países da OCDE, que totalizam 799 horas/ano. Além destas horas obrigatórias no currículo escolar, a Escola Pública assumiu, desde 2006, a chamada “Escola a tempo inteiro” com a introdução das Áreas de Enriquecimento Curricular (AECs) no 1º Ciclo que, como o próprio nome indica, serviriam como complemento educativo, facultativo, e também para manter as crianças ocupadas no espaço escolar, pelo menos, 8 horas por dia. A Escola Pública assume, assim, a responsabilidade pela educação global das crianças, quer curricular quer extracurricular, e o papel de ajudar as famílias a manterem os seus filhos em segurança enquanto têm de trabalhar. 

Podemos trazer a discussão muitas questões que estes números e políticas levantam, desde logo se se trata de uma resposta eficaz a uma necessidade social de apoio económico às famílias que não têm como pagar actividades extracurriculares de enriquecimento artístico ou desportivo, numa tentativa de democratização e de igualdade de oportunidades; ou se servirá de ajuda em termos logísticos de acolhimento e protecção das crianças até aos 10 anos durante um horário alargado, quando é difícil conciliar horários de trabalho devido à natureza dos mesmos; ou ainda, se contribui para a formação e emprego de mais pessoas, sejam professores, auxiliares, ajudantes, supervisores, nos espaços educativos. Mas vou cingir-me ao que me trouxe aqui: o crescimento e desenvolvimento saudáveis dos nossos filhos, em todas as suas vertentes de ampliação de competências motoras, sociais e emocionais, onde o papel da família é fundamental para o desenvolvimento e protecção psicossocial, para a criação de um sentimento de identidade e de pertença, de acomodação e transmissão de valores e de uma cultura. Mas tudo isto só é possível se houver tempo. E espaço. Tempo e espaço de comunicação, de partilha, de brincadeira. 

A título de exemplo, como professora numa escola de ensino artístico especializado de música, uma actividade com currículos oficiais próprios, mas extracurricular, deparo-me todos os anos com situações incontornáveis e, a meu ver, absurdas e angustiantes, como ter alunos até aos 10 anos com aulas a terminarem pelas 19 ou 20 horas. E por duas razões: ou porque os pais não conseguem sair dos trabalhos para os irem buscar à escola regular mais cedo, ou porque os próprios alunos não conseguem sair antes das 16h30. Ano após ano, esse tempo e esse espaço de comunicação, de partilha e de brincadeira são contados ao minuto, no dia-a-dia destas famílias.

Numa altura em que inúmeros estudos nos demonstram o que realmente contribui para um crescimento feliz e saudável das crianças, para uma sociedade com qualidade de vida e equilibrada, numa altura em que inúmeros especialistas na área da educação, saúde, sociologia nos vêm alertar para a importância do tempo em família para um desenvolvimento social e emocional saudáveis, e a importância do tempo livre para podermos escolher o que fazer, a que brincar, ou simplesmente para nos entediarmos, as políticas laborais, sociais e educativas parecem não ouvir, não ler, não ver que estamos a ir por um caminho perigoso e de desregulação das relações, das emoções e de uma visão saudável da vida em sociedade. 

É urgente discutir um novo modelo de organização social do tempo. É fundamental podermos construir o nosso tempo e o nosso espaço equilibrando os vários parâmetros, escolar, laboral e familiar, e não cingi-los a contextos fechados, sedentários e superprotegidos. É importantíssimo voltar a ter os nossos filhos a brincar com os amigos na rua, na floresta, nos jardins, fomentando a diversidade, as experiências e os riscos, as situações imprevisíveis, a autonomia. O crescimento e as aprendizagens devem acontecer em diferentes espaços, com diferentes grupos sociais, com dinâmicas próprias e em constante evolução, procura e descoberta. E sempre que possível, com a família que temos e com as que escolhemos.

Artigos Relacionados