Educação

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Se houvera quem me ensinara/ Quem aprendia era eu

Dizia-nos Thoreau que quando, injustamente, subtraio a tábua de salvação a um homem que se afoga, é minha obrigação devolvê-la, ainda que eu próprio me afogue. Quando o Governo decretou que todas as escolas iriam suspender as suas atividades letivas, subtraiu a tábua de salvação a milhares de crianças. É certo que nem todos os Governos procederam da mesma forma. Ouvi por aí que “não se podem tomar medidas draconianas que têm um impacto limitado na epidemia, a não ser quebrar as funções da sociedade”. E quebrar as funções da escola é celebrar o caminho da direita política. 

Há muito que sabemos que a educação desempenha um papel determinante na redução das desigualdades sociais e económicas, sobretudo no que diz respeito às crianças e jovens mais fragilizados. Este é um plano ainda por cumprir, sobretudo em Portugal. Somos um dos países da OCDE onde os alunos de meios socioeconómicos desfavorecidos têm três vezes mais probabilidades de terem maus resultados quando comparados com alunos de meios socioeconómicos favorecidos, ou ainda, a probabilidade de um aluno de meio desfavorecido reprovar é 12,23 vezes superior à de um colega de meio favorecido. Só um País é pior do que Portugal, quando, em média, na OCDE, este valor é de 5,14. Claro que também tem que se lhe diga. Mas não aqui que já vamos nos 1462 caracteres. Há muito que sabemos que a exclusão escolar é a via para a exclusão social. O dinheiro não chega para tudo. E, para uma sociedade democrática, nós sabemos o quão fundamental é termos um banco chamado novo. Por outras palavras, a escola ainda não conseguiu alcançar o seu verdadeiro propósito porque nunca foi eleita como prioridade. Assim, num momento inspirador e, de certa forma, enternecedor, no contexto do ensino à distância, o Secretário de Estado Adjunto e da Educação concluiu: “Nunca dourámos a pílula. O ensino à distância foi um grande acelerador de desigualdades”. Aperceberam-se então que as desigualdades acentuadas pelo ensino à distância poderiam ser irrecuperáveis. Voltou então o Governo a decretar que todas as escolas iriam retomar as atividades letivas presenciais neste ano letivo. Foi aqui que caímos numa armadilha. Mais uma. Senhor Secretário, permita-me o atrevimento: é importante começar a dourar alguma coisa. E a escola é o melhor para se dourar.

Em 1992, Antoine Prost alertava para o perigo do funcionamento cego das escolas. Dizia ele que a maioria das instituições se interrogam frequentemente sobre si mesmas, refletindo coletivamente sobre o seu funcionamento. Prost afirmava que estas práticas de questionamento são desconhecidas nas escolas. As escolas estão de tal modo habituadas a esse funcionamento às cegas, que nem se apercebem, nem questionam, sobre a incompatibilidade dos seus fins com os seus modos de funcionamento. Foi este questionamento que aconteceu quando as instituições de acolhimento se recusaram a cumprir os quatorze dias de isolamento para as crianças que eram retiradas às famílias. Não, não vale tudo. Lá foi a DGS, reconhecendo que a medida era penalizadora para as crianças, reformular as orientações. 

A humanização das escolas e dos processos educativos que lá acontecem tem sido feita com muita dificuldade e, sobretudo, à custa de iniciativas de algumas minorias. Hoje sabe-se (?) que não é possível aprender sem interação. Sabe-se que a aprendizagem é, em primeiro lugar, a interiorização de um modo relacional onde a proximidade, o outro e o sentimento de pertença são elementos fulcrais à aprendizagem e ao desenvolvimento. Apesar de a escola ser uma construção da sociedade exclusivamente para as crianças, começamos a dar-nos conta de que na escola as crianças não contam para nada. Sabe-se que o medo, a insegurança, a desconfiança são elementos que desempenham um papel negativo nos processos de desenvolvimento. Mas é isto que promovemos.

Em 2004 os Xutos profetizavam um mundo ao contrário. Em 2020 ele está vergonhosamente ao contrário. Neste estranho mundo as crianças têm medo de ir à escola e a escola quer que as crianças lá estejam o menos tempo possível. Quer seja a escola a rejeitá-los ou eles a rejeitarem a escola, tanto faz. A escola, enquanto projeto de humanidade, terá falhado e será a principal responsável pela inabilidade coletiva, a exclusão e um mundo de umbigos. 

Vivemos num mundo onde o problema das sociedades é a escola. Onde tiramos as máscaras do nariz com o objetivo de ouvir melhor. Um mundo onde roubamos a infância e obrigamos as crianças a crescer cada vez mais depressa. Vivemos num mundo que defende a escolaridade obrigatória e a cidadania opcional. Num mundo onde as idas à casa de banho deixaram de acontecer nos intervalos e passaram a ser durante as aulas. Onde temos pulseiras com cores e apenas podemos conviver com quem tiver a mesma cor. Vivemos num mundo onde só assobiamos para dentro. Num mundo que não permite a entrada das famílias na escola. 

Não temos uma crença ilimitada nas potencialidades regeneradoras da escola. Porém, as potencialidades de uma educação de qualidade revelam-se todos os dias. Por isso, tal como Boaventura Sousa Santos, também eu me espanto com o facto do prodigioso desenvolvimento científico e do conhecimento do mundo, se terem traduzido numa tão pequena sabedoria do mundo, do homem consigo próprio, com os outros, com as crianças, com a natureza, com a aprendizagem, com o desenvolvimento e com a vida. 

É nossa obrigação devolver a escola às crianças, aos jovens, aos professores e às famílias. Uma escola que não promova o afastamento de casa, dos afetos e da segurança. Não podemos permitir que a desumanização das escolas aconteça no espaço de um ano letivo. 

É fundamental olharmos para as condicionantes reais e perceber de que forma podemos construir uma escola de proximidade. Sem ignorar as questões de saúde, mas, porque é uma escola, ocuparmo-nos dos processos educativos e da sua qualidade.

Para aqueles que entre nós optarem pelo silêncio não esqueçamos que todos os silêncios são cúmplices. Não podemos calar a voz das injustiças que se cumprem diariamente através da escola.

Adaptando a ideia de Don Milani para o coletivo, e recuperando a ideia de um sonho de Martin Luther King, um dia iremos escrever por cima da porta de entrada de todas as escolas “We care”. A transmissão é inevitável pois não nos podemos amar e relacionar sem transmitir.

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