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Memória

A Voz do Operário sob a ditadura: insubmissa com António Sérgio

Passaram, em Setembro, os 140 anos do nascimento de um dos maiores pensadores portugueses: António Sérgio.

Por sinal, um pensador anti-capitalista e destacado resistente antifascista.

Sob a ditadura de Salazar, foi preso político em 1933, 1935, 1948 e ainda em 1958 – na última vez já tinha 75 anos de idade.

Esteve encarcerado no Aljube, no Limoeiro e na Penitenciária, em Lisboa. E ainda na prisão de Caxias, em Oeiras.

Em 1935, Salazar foi mesmo ao ponto de o expulsar de Portugal. Do que resultou que Sérgio estava exilado em Madrid, quando começou a guerra civil espanhola (em 1936).

Ver bem e pensar melhor

Para evitar ser preso, António Sérgio já tinha escolhido partir para um primeiro exílio em 1927, ainda no início da ditadura militar.

E preso veio a ser, pouco depois de regressar, em julho de 1933.

Pois, em Outubro desse ano, foi um dos oradores na festa de abertura do ano letivo n’A Voz do Operário.

Falando para crianças, não resistiu a procurar semear pensamento crítico.

Segundo um relato, Sérgio “pede licença à gente pequenina para lhes contar uma história: a história do Califa e os dois conselheiros”. E “por algum tempo conseguiu interessar toda a assistência”, terminando por “afirmar que, tal como no fundo moral da sua história, ainda melhor que ver as coisas é pensá-las bem”.

Concluiu convicto de que “nas escolas de A Voz do Operário todos iriam aprender não só a ver bem as coisas mas também a pensá-las melhor”.

E “foi alvo de uma grande ovação”.

Falou a seguir o professor Manuel da Silva, que convidou a criançada a dar “uma nova ovação” a Sérgio, “pelo brilhantismo que imprimiu à linda história dos conselheiros e do califa”. A assistência “correspondeu delirantemente” [V.O., 11/1933, p.1].

Dias depois, esta coletividade convidou António Sérgio para ser o presidente do júri de um concurso para admissão de professores. O que ele aceitou e cumpriu.

Antero de Quental

Em 1942, A Voz do Operário empenhou-se em comemorar o centenário do nascimento do poeta Antero de Quental. Importante pioneiro das ideias socialistas e do movimento operário em Portugal.

Foi certamente um desafio. Além da ditadura em Portugal, era quase toda a Europa continental que estava sob o jugo do nazi-fascismo. As tropas de Adolf Hitler ainda não tinham sido derrotadas pelo «Exército Vermelho», na batalha de Estalingrado (URSS).

Naquele momento incerto, A Voz do Operário contou com a colaboração de António Sérgio, para criar uma exposição sobre o socialista Antero de Quental.

Houve também palestra, vários artigos neste jornal, récita de poesia e música. Foram iniciativas constrangidas pelo contexto repressivo. Mas nas quais colaboraram outros intelectuais antifascistas, como Agostinho da Silva, Fernando Lopes Graça, Manuel Mendes e Manuela Porto.

Contra os «barões»

Em 1954 foi o centenário da morte do escritor Almeida Garret. Um homem da revolução liberal de 1820. De progresso do absolutismo para a monarquia constitucional.

Uma efémeride que a ditadura estava procurando controlar num sentido conservador e conformista.

Apesar dos limites impostos pela censura, A Voz do Operário marcou um tom insubmisso, com um artigo de António Sérgio.

Começa por referir que Garrett era acusado de incoerência por ter aceite um título de nobreza, depois do que escrevera contra os «barões».

Sérgio considera essa acusação como “inteiramente absurda”, e como “mais uma prova de quanto os homens tendem a pensar sobre as palavras e não sobre as ideias que essas mesmas palavras representam”.

Explica que pelo vocábulo «barões», Garrett não se referia ao antigo título da nobreza medieval mas sim aos “agiotas novos-ricos, e, em geral, os membros da oligarquia que dominava a sociedade do seu tempo”.

Alude à existência de classes sociais antagónicas, num mundo composto pela “minoria de «barões» que vampiricamente o exploravam, e de uma maioria que era a das vítimas desses tais: a dos desafortunados”.

E aponta que, “apesar da forma pitoresca, borboleante e brincalhona com que fala Garret dos senhores «barões» nas suas «Viagens da minha terra», eram os «barões» uma preocupação seríissima – e a mais importante – no pensamento social do nosso escritor”.

Porque “atacando os «barões», ele criticava, de facto, a própria civilização industrial burguesa, e embrenhava-se no mais perigoso, no mais profundo, dos problemas da sociedade do século XIX”.

Claro que, “pelo que toca à solução de tal problema (que era para ele de gravidade máxima) não podemos aceitar, os homens de hoje, a que Almeida Garrett preconizava: o paternalismo”.

Mas Sérgio conclui que “devemos agradecer-lhe, sem dúvida alguma, que medisse a sua importância naquele tempo, que apontasse os abismos para que os «barões» nos levavam, e que se empenhasse em opor aos seus malefícios o ideal humano da fraternidade” [V.O., 12/1954, p.1].

Legado

Quando António Sérgio faleceu, A Voz do Operário recordou que “nele sempre a nossa Sociedade encontrou um amigo devotado e um cooperador valioso”.

E voltou a publicar aquele seu artigo, “como homenagem ao Homem cuja ação continua pela lição permanente e fecunda da obra que legou” [V.O., 05/1969, p.1].

Além das ideias socialistas, na obra de Sérgio é de salientar o olhar crítico que lançou à história de Portugal. Pelo realce às contradições de classe e à influência da estrutura económica e social; e pelo questionamento do ‘império’ colonial como fator de subdesenvolvimento da economia portuguesa, somado à inquisição católica e à perseguição a mouros e judeus.

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