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Desporto popular

Quando o Santo António puxa para baixo 

Subindo a rua da Cruz de Santa Apolónia, desembocamos num largo que marca o início de uma rua cujo nome é o que resta de um Vale. E valha-nos Santo António. É um perfeito paradoxo, porque de tão íngreme, esta Rua não se sobe, verdadeiramente escala-se. São 550 metros de uma autêntica parede, que chega a ter 15% de inclinação. Ora, que o digam os 117 inscritos na prova rainha do ciclismo popular que, mais adiante, fazem fila à porta do nº 33, agora sede do Mirantense Futebol Clube, depois de despejado da sua casa original, em nome da chamada Lei Cristas.

A partida não tarda. O Vale alarga ao fundo, numa encruzilhada de ruas, e lá está o ponto de partida para estes corajosos ciclistas. A organização, mobilizada no seio da Mirantense FC e da Associação Desportiva e Recreativa O Relâmpago, controla os acessos à pista. Bom, pista é um eufemismo para facilidade dos leitores, mas não dos ciclistas. De Washington o autocarro para, e os passageiros debruçam-se na janela para ver o que se passa. Mais acima, da Leite de Vasconcelos, o carro respeita o sinal de stop do popular de colete laranja que é ali, improvisadamente, a autoridade. Já de Santa Engrácia não há novidades. 

Lá vem o primeiro! Mal dada a ordem de partida na encruzilhada de ruas, lança-se o ciclista numa encruzilhada maior. Até ao Mercado Pomar do Vale, onde o senhor Cipriano dá as boas-vindas aos clientes, tudo vai bem, mas mais adiante, mal a Rua do Vale curvar, junto a Leite Vasconcelos, então o cenário é de esmorecer o mais dos entusiastas atleta. De repente, a rua transforma-se numa escarpa. E, dali à Churrasqueira A. Costa, que alguém os ajude. De pé na bicicleta, gingando entre populares que engrossam as bermas da rua e estreitam o caminho dos ciclistas, a prova encarna a sua mais genuína origem popular. O bairro, o que ainda resta e muito do que se lhe assomou, salta para a rua abraçando o evento, reforçando a sua chancela popular e quase transformando esta prova numa subida dos Alpes, do mediático Tour de France. E este é o momento. A Rua do Vale de Santo António, por teimosia do Mirantense e do Relâmpago, mesmo contra a vontade da nova aristocracia do dinheiro, morta por trocar tudo isto por um milionário negócio, ainda não perdeu a alma do bairro, como quando, lembra a D. Maria na esplanada da Leitaria- Café e Snack-Bar Preto e Branco: “Ao fim da tarde, vínhamos para a porta da rua e passávamos horas a conversar uns com os outros”. 

Mas atentemos, já aí vem mais um, e aqui, no lance da Churrasqueira, os ciclistas parecem apontar a bicicleta à Nossa Senhora de Fátima de Angola, que figura no cartaz afixado na esplanada da Churrasqueira. Na verdade, só se for mesmo a Nossa Senhora de Fátima que os ajude, porque este Santo António do Vale só empurra é para baixo. De resto, a velha Ermida, agora Capela do Vale de Santo António, consta que serviu de descanso ao Santo quando este se dirigia para embarcar no Tejo. E se o Santo se cansava a descer, imaginem lá a subir. 

Manuel Cipriano comprova essa distinta dureza da descida que cansou Santo António: “Quando a rua tinha dois sentidos, num dia mais chuvoso de inverno, era vê-los, autocarros e carros, baterem neste gaveto a seguir à curva”. E não é difícil de imaginar! Manuel Cipriano só estabeleceu a sua mercearia em 1974, lembra-se da rua do Vale povoada de comércio: “Pelo menos três mercearias e muitos cafés, um posto de polícia aqui mais acima. Muitos dos meus clientes eram estivadores. Viviam aqui uma série deles”. Percebe-se, afinal o Tejo não está assim tão longe. Agora, lamenta, “os mais velhos foram corridos e há muito alojamento local. Os meus clientes são mais novos e estrangeiros.”

Do que Manuel Cipriano não se lembra é desta velha prova que o famosos Francisco Inácio venceu nos anos 40, nem sequer da última prova, em 1954, última antes de um longo interregno que, agora, a agremiação popular Mirantense FC, juntamente com a Associação Desportiva e Recreativa “O Relâmpago”, procuram, pelo segundo ano consecutivo, reanimar. Fazer regressar esta velha prova desportiva e popular, a “Subida da Rampa de Santo António”, é também recordar a história do ciclismo dos anos 40 e 50. Por lá não correram provavelmente Nicolau e Trindade, nem mesmo o Faísca, mas o mesmo já não se diga do também famoso Francisco Inácio que juntou o primeiro e segundo troféu desta ciclópica prova a muitos outros na Volta a Portugal. Ou até do também famoso João Tavares Marcelino que, em 1952, foi o mais rápido a trepar estes 550 metros, sentado na sua bicicleta. 

E, nem de propósito, ali, bem ao lado de Euprémio Scarpa, o presidente da direção do Relâmpago, que galhardamente recolhia e compilava informação das subidas dos ciclistas, lá estavam os filhos de Inácio e Marcelino. Amadeu e Sandra, num diálogo curioso, recordavam velhos troféus conquistados pelos pais, e partilhavam as facécias. Ali passava, como num velho ecrã, a história desta manifestação desportiva popular, mesmo quando metia a elite do ciclismo.

Mas, voltemos à subida a caminho da meta. Depois da Churrasqueira do A. Costa, se até lá os ciclistas, de olhos focados nas rodas pedaleiras, num género de prece ao esforço, não podiam disfrutar do colorido das varandas engalanadas com ornamentos alusivos à prova rainha do ciclismo popular, a partir de então, podem folgar as costas e voltar a sentar no selim, já que a subida alivia um pouco antes de terminar defronte do Honey’s Minimercados/Indiano Grocery… sinais da nova Rua do Vale.

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