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Multiculturalidade

Quando a escola é um lugar estranho

O Ministério da Educação revelou que o número de alunos estrangeiros nas escolas públicas aumentou 47% de 2018 a 2020. O crescente número de alunos estrangeiros no ensino público é um desafio que a comunidade educativa muitas vezes estranha e o sistema educativo tarda em entranhar.

51,1% dos alunos estrangeiros em Portugal frequentam escolas públicas na Área Metropolitana de Lisboa.

O crescente número de alunos estrangeiros no ensino público é um desafio que a comunidade educativa muitas vezes estranha e o sistema educativo tarda em entranhar, diz Joana Simões Piedade, mestre em Migrações, Inter-Etnicidades e Transnacionalismo. Para Pascal Paulus, do Movimento Escola Moderna e da direção da Voz do Operário, “a sociedade sempre foi diversa, só os defensores da escola da instrução que fantasiam a turma homogénea não o veem”.

Em janeiro último, o Ministério da Educação revelou que o número de alunos estrangeiros nas escolas públicas do Ensino Básico e Secundário, tinha aumentado 47% de 2018 a 2020, não tendo em conta a realidade após o início da guerra e a chegada de alunos ucranianos.

Segundo o relatório estatístico anual do Observatório das Migrações 2021, 51,1% destes alunos estrangeiros frequentam as escolas públicas na Área Metropolitana de Lisboa (AML). A região com maior proporção de alunos estrangeiros para o total de matriculados em 2019/2020 continue a ser o Algarve, com 13,2%, logo seguida da AML com 11,5%. No total há 68.018 estudantes estrangeiros matriculados no ano letivo 2019/2020.

Henrique Chaves, da Frente Anti-Racista, lembra que “o número de migrantes com processo legalizado, 450 mil, dispara para cerca de um milhão, se tivermos em conta aqueles que ainda se encontram por legalizar”. “A lei portuguesa, no que refere à obrigatoriedade dos jovens até aos 18 anos frequentarem o ensino, não discrimina”, mas o processo burocrático de “matrícula destas crianças é complicado e isso desincentiva as famílias”, acrescenta.

Pedro Carlos, administrativo numa escola da AML, admite que a legislação que regula estes processos de matrícula deixa espaço à subjetividade e ao humor de quem decide: a resposta à inclusão destes alunos exige da escola condições que às vezes não há.

Na AML, onde se concentra o maior número de alunos estrangeiros, Joana Simões Piedade, cuja tese, com trabalho de campo recente em agrupamentos de escolas da AML, se debruça sobre “O lugar da escola na produção e reprodução do racismo e no seu combate” diz-nos que na formação de professores e funcionais nota-se alguma incapacidade da comunidade educativa para enfrentar uma escola cada vez mais multicultural e multilinguística. Muitos, refere, “participam nestas formações exatamente por não se sentirem preparados para lidar com estes estudantes e suas famílias”.

Há relatórios, designadamente da OCDE que documentam como os alunos imigrantes tendem a apresentar piores resultados escolares relativamente aos nacionais dos países de acolhimento. E “muitas vezes não se sentem incluídos, escutados e atendidos nas suas necessidades”.

Desde logo, precisa Joana Piedade, “têm que se ajustar a um contexto diferente, aprender uma nova língua”. A língua é “das dificuldades mais apontada”. Em várias escolas onde desenvolveu projetos educativos, estes estudantes estiveram vários meses sem a disciplina de português como língua não materna, por falta de professores”: “imaginem alunos que não falam português a terem disciplinas numa língua que não conhecem”.

Henrique Chaves recorda que, “das 450 mil imigrantes que residem em Portugal, cerca de 100 mil ou não falam português ou não têm o português como língua materna.”

No trabalho de campo da sua tese, Joana Piedade foi muitas vezes foi abordada por alunos oriundos de Países de Língua Oficial Portuguesa com dificuldades no contexto escolar por a língua portuguesa falada noutros países nem sempre ser bem aceite e valorizada nas escolas em Portugal”. E recorda testemunhos de alunos a ouvir professores dizerem-lhes: “fala mas é português!”

Numa das conclusões desta tese, alerta-se para a necessidade de refletir se sobre a forma de uma tentativa de integração na escola, não se exige a alunos de grupos minoritários que construam do zero o seu percurso fazendo tábua rasa da cultura e vida anterior, em vez de criarem espaços a que pertençam e se sintam reconhecidos. O relatório da OCDE refere-se ainda a uma dupla desvantagem destes estudantes. À dificuldade da língua juntam, na maioria das vezes, “as condições socioeconómicas dos pais”, que também isso se reflete no desempenho e sucesso escolar.

Pascal Paulus, doutorado em Sociologia da Educação, pertencente ao MEM (Movimento da Escola Moderna português) e consultor da Fundação Aga Khan, diz que diversidade da escola “passa pela proveniência social dos utentes”. E exemplifica: “o projeto educativo da Voz do Operário não teve de adaptar-se a uma realidade multicultural e uma diversidade sociocultural”: “desde que as suas escolas começaram a abraçar as propostas de trabalho do Movimento da Escola Moderna, tornaram-se mais abertas à diversidade, seja de que origem for. São as crianças e adultos que as acompanham que em conjunto definem o seu projeto de trabalho”. Neste sentido, não é o projeto que se adapta a uma realidade diversa, mas a realidade diversa que encontra em projetos como o da Voz do Operário uma resposta para a procura de uma escola que reflete e é refletida pela sociedade e não uma escola que quer fabricar clones”.

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