Opinião

A Voz dos Livros

Casa da Malta, de Fernando Namora

Fernando Namora, por nascimento e vivência, possuía um profundo conhecimento das classes trabalhadoras, e transporta esses saberes, essa feraz experiência, para impregnar de verosimilhança as personagens que habitam os seus textos.

Casa da Malta, de Fernando Namora – Edição Caminho/2022

A sua escrita, quase sempre eficaz, sensível, alicerçada numa poética do inconformismo e, em termos narrativos, modelar, transfigurava a realidade sórdida e abjecta dos anos de sombra do salazarismo, sintonizando uma aguda pecepção do real, numa linguagem madura, exigente e contemporânea, que lhe permite falar nos seus romances e narrativas, como é o caso deste Casa da Malta.

É na compreensão, sem cedências nem paternalismos, do mundo dos outros, mormente daqueles que são expurgados da sua humanidade, que o universo temático de Namora se afirma, reflecte e constrói. Com incoerências, com contradições, mas plena de vida, de sinceridade e de excepcionais qualidades narrativas, que torna a sua escrita apelativa, sedutora e capaz de captar, ainda hoje, a atenção de um grande número de novos leitores. O país de que Namora fala nos seus livros, nomeadamente em Casa da Malta, não mudou assim tanto nas suas vertentes essenciais.

No prefácio que acompanha esta 19ª. edição de Casa da Malta (1ª. edição na Caminho), escreve o autor de Retalhos da Vida de Um Médico: Esse casebre de malteseria era uma nódoa no povoado. Cercavam-no, por contraste, as moradas da gente grada: o visconde, perdido num casarão, os que tinham ido amealhar fortunas aos Brasis fabulosos e me davam às vezes o ar de negreiros reformados, os lavradores de largos teres que disputavam ao visconde o mando dos que obedeciam para sobreviver e ainda velhas famílias cuja última cepa seriam aquelas senhoras piedosas, magras, que nenhum forasteiro viera desencaminhar.

É deste ferrete, desta dor viúva que perpassava esse tempo português, que a escrita de Namora descreve com agudo sentido do real, mesmo quando as mazelas do humano, os desvãos da vida, percorrem o seu discurso – as fístulas que emergem do pesadelo, e os homens comuns, com os seus medos e incoerências face ao estupor, que povoam esta narrativa, a vários títulos notável, reconduz a nossa ficção para os territórios da lisura, da análise conjuntiva de uma peculiar atmosfera, das agrura dum tempo agrilhoado que, mais do que incidindo apenas nas persecutórias investidas sobre um heroico grupo de resistentes, se exercia tentacular, claustrofóbica, sobre o cidadão comum. É das veredas do medo e da ignomínia, também da esperança, dos pontos de fuga ao absurdo, que este texto, nos fala de modo irrefutável. Mais uma reedição das Obras de Fernando Namora, sob a direcção de José Manuel Mendes que, obviamente, saudamos.

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