As primeiras bombas russas caíram em território da Ucrânia no princípio da manhã de 24 de fevereiro. Surpreendido, o mundo assistiu à entrada da Rússia num conflito que dura há praticamente oito anos. Para Kiev, é uma “violação da soberania” e do “direito internacional”. Para Moscovo, é a “defesa” das populações de Donbass com o objetivo de “desnazificar” e “desmilitarizar” a Ucrânia, afastando-a de uma entrada na NATO. Se numa guerra a primeira vítima é a verdade, importa visitar o passado para entender o presente.
Golpe cozinhado no exterior
No dia 24 de março de 1999, enquanto caíam as primeiras bombas da NATO na Jugoslávia, o então chanceler alemão Gerhard Schroder justificava a operação militar: “Não vamos para a guerra, mas somos chamados a implementar uma solução pacífica no Kosovo, inclusive por meios militares”. Para este território de quase 11 mil quilómetros quadrados encravado na Sérvia a maioria da população, albanesa, exigia a independência. Com o pretexto de proteger esta comunidade dos ataques sérvios, a aliança atlântica abriu um precedente que é agora usado pela Rússia para justificar a sua intervenção na Ucrânia.
Para entender o que se passa na Ucrânia é preciso olhar para a geografia do país e entender a sua diversidade. A parte oriental tem muitas regiões de maioria russa e é mais industrializada, a parte ocidental é maioritariamente ucraniana e uma elevada produção agrícola. É também preciso recuar a 2004, quando a chamada revolução laranja levou Viktor Yushchenko à presidência, para entender a estratégia dos Estados Unidos e de Bruxelas para trazer a Ucrânia para a União Europeia (UE) e a NATO.
Nesse ano, segundo o The Guardian, os partidos Democrata e Republicano, o National Democratic Institute, o Departamento de Estado, a USAid, a ONG Freedom House e o Open Society Institute gastaram cerca de 14 milhões de dólares na campanha para eleger Yushchenko. Contudo, o presidente da Ucrânia acabou salpicado por escândalos de corrupção e perdeu as eleições para Víktor Yanukovytch em 2010. Com o processo de adesão à UE em curso, o sucessor de Yushchenko decide, em novembro de 2013, não assinar o acordo de associação com Bruxelas, que deveria ter sido assinado na Conferência de Vilnius.
É neste contexto que começam os protestos na Praça Maidan contra Víktor Yanukovytch, considerado um aliado de Moscovo. Ao princípio, as manifestações eram pacíficas e até receberam a visita dos senadores norte-americanos John McCain e Chris Murphy que não só reuniram com a oposição como tiveram liberdade para discursar aos manifestantes num país estrangeiro.
Foi em janeiro de 2014 que rebentaram os primeiros confrontos com a polícia. Segundo a BBC, à frente estavam elementos mais violentos, pertencentes ao movimento neonazi Sector Direito e às organizações fascistas Svoboda e Congresso dos Nacionalistas Ucranianos, conhecidos por atacarem a população russófona.
No mês seguinte, também a BBC divulgou uma conversa telefónica privada entre a secretária de estado norte-americana Victoria Nuland e o embaixador dos EUA em Kiev, sobre qual deveria ser o governo depois da queda de Yanukovych. Zangada com a reação demorada de Bruxelas, Nuland chega a dizer “que se foda a UE”. Nesse mesmo mês, a violência escalou de tal forma que Víktor Yanukovych fugiu da Ucrânia.
Fascização do regime ucraniano
Com a fuga do presidente eleito, a Ucrânia celebrou novas eleições num ambiente de extremismo e perseguição da comunidade russófona e destruição de símbolos comunistas. O Partido Comunista da Ucrânia (PCU), que tinha obtido 13% nas legislativas anteriores e era uma força de peso nas regiões do leste, foi impedido de participar e, mais tarde, ilegalizado. Em muitos lugares do país, a população não votou em protesto contra o golpe.
Nesse plebiscito, ganhou Petro Poroshenko, um dos homens mais ricos do país, que deu a nacionalidade ucraniana a três estrangeiros que tinham estudado nos Estados Unidos no dia em que estes tomaram posse como ministros do novo governo. Foi o caso de Natalie Jaresko (pasta das Finanças), norte-americana, de Aivaras Abromavičius (pasta da Economia), lituano, e de Alexander Kvitashvili (pasta da Saúde), georgiano como o ex-presidente Mikheil Saakashvili que acabou como governador de Odessa.
Também nomeado pelo presidente Petro Poroshenko como secretário da Segurança Nacional e Defesa, Andriy Parubiy viu reconhecido o seu papel no golpe onde coordenou os voluntários na Praça Maidan, segundo o Washington Post. Mais tarde, tornou-se presidente do parlamento ucraniano e ainda hoje é deputado. Foi fundador do partido neonazi Partido da Ucrânia Nacional-Social e, em 2010, tinha pedido ao parlamento europeu para retirar a posição negativa em relação ao líder colaboracionista nazi, durante a Segunda Guerra Mundial, Stepan Bandera.
É neste ambiente que o neonazi Batalhão Azov cresce exponencialmente em vários pontos do país, enquanto combate os protestos de quem não reconhece o novo poder. Em maio de 2014, um enorme grupo de extrema-direita encurralou mais de meia centena de antifascistas na Casa dos Sindicatos em Odessa e pegou-lhe fogo. Morreram 42 pessoas. Algumas delas foram alvejadas enquanto tentavam saltar pelas janelas.
Para além de aproximar a Ucrânia da NATO e da UE, o novo regime instituiu o ucraniano como língua única, fechou canais russos, proibiu partidos, deu o estatuto de herói a Stepan Bandera, colaboracionista nazi durante a Segunda Guerra Mundial, responsável pelo massacre de 100 mil polacos, reconheceu como veteranos de guerra todos os ucranianos colaboradores com o nazismo, integrou o Batalhão Azov no exército, permitiu paradas neonazis e nomeou subdirector do Ministério ucraniano do Interior o fundador de uma página na internet que ficou conhecida por publicar listagens de “inimigos” com os seus dados pessoais. Duas destas pessoas apareceram assassinadas.
Em todos estes anos, não faltaram artigos em jornais ocidentais preocupados com o facto de a Ucrânia se estar a transformar num campo aberto para o treino de neonazis vindos de todo o mundo, incluindo Portugal.
“Porque nós vamos continuar a ter os nossos empregos, eles [população de Donbass] não. Nós teremos as nossas reformas, eles não. Nós teremos acesso a cuidados para as nossas crianças e pensionistas, eles não. As nossas crianças irão à escola e à creche, as deles vão estar fechadas em caves [por causa dos bombardeamentos]. Isto é exatamente como vamos ganhar a guerra”, afirmou de forma polémica o presidente Poroshenko em relação aos habitantes de Donbass.
Guerra em Donbass
Em abril de 2014, as populações de Donbass e da Crimeia anunciaram não reconhecer o novo regime e no auge da violência nas ruas em toda a Ucrânia alegam legítima defesa e decidem também tomar o poder nestas regiões usando o golpe em Kiev como precedente. É então que as tropas ucranianas tentam recuperar o poder e rebenta a guerra em Donbass com estes territórios a auto-proclamam-se Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk (RPD e RPL).
Palco de batalhas sangrentas, o conflito praticamente desconhecido provocou 1,3 milhões de refugiados, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, cerca de um terço fugiu para a Rússia. Esta guerra, em oito anos, segundo as Nações Unidas, causou 3.095 mortes de civis. Destes, 152 eram crianças.
Apesar dos acordos assinados em 2014 e em 2015 entre a Ucrânia, a RPD, a RPL, a Rússia e a OSCE, em Minsk, para pôr fim ao conflito e restabelecer a normalidade, Kiev nunca cumpriu os principais pontos que firmou, sobretudo o da descentralização administrativa com a criação de governos regionais que dessem autonomia a estes territórios. Em 2018, o presidente da auto-proclamada RPD, Alexander Zakharchenko, membro da mesa de negociações, foi assassinado em Donetsk, alegadamente pelos serviços secretos ucranianos.
Apesar dos ataques do exército ucraniano e dos sucessivos pedidos de reconhecimento da independência destas repúblicas ao presidente russo Vladimir Putin, Moscovo insistiu sempre no cumprimento dos Acordos de Minsk como solução para o conflito. Até fevereiro de 2022. Após a declaração de reconhecimento da soberania destes territórios, a Rússia surpreendeu o mundo ao avançar para lá das fronteiras de Donetsk e Lugansk.
Alargamento da NATO
Nos últimos meses, antes da intervenção da Rússia na Ucrânia, Kiev enunciou por diversas vezes através do seu presidente Volodymyr Zelensky o desejo de entrar na NATO, organização militar fundada para fazer frente à União Soviética. Com a possibilidade de ver a Aliança Atlântica nas suas fronteiras, os dirigentes russos acusaram o Ocidente de estar a cercar o país e de violar os acordos estabelecidos durante a dissolução da União Soviética de que não haveria alargamento da NATO a leste. A verdade é que desde o fim da URSS, mais de uma dezena de países, vários deles pertencentes ao Pacto de Varsóvia e até à ex-URSS, aderiram à aliança atlântica.
Racismo nas fronteiras
A decisão russa de invadir a Ucrânia alastrando a guerra já existente a todo o país provocou uma nova onda de refugiados. Cerca de um milhão de pessoas em fuga provocou a solidariedade internacional e a mobilização de vários governos para resgatar cidadãos estrangeiros que estavam na Ucrânia. Contudo, as autoridades polacas e ucranianas foram acusadas de atos de racismo e xenofobia por tentarem impedir a saída da Ucrânia e a entrada na Polónia de cidadãos afrodescendentes, africanos, árabes e asiáticos. Foi o caso de vários cidadãos portugueses.
UE censura meios de comunicação
A UE anunciou a decisão de proibir todas as atividades dos canais russos Russian Today (RT) e Sputnik News. Esta entrou em vigor em todo o território da União Europeia, sob a acusação de que são veículos de desinformação. A RT é um canal internacional de televisão e a Sputnik é uma agência de notícias. Os dois são meios estatais russos e já não estão disponíveis.
De acordo com o comunicado da UE, a proibição vai permanecer em vigor “até que a agressão à Ucrânia termine e até que a Federação Russa e seus veículos associados deixem de realizar ações de desinformação e manipulação de informações contra a UE e seus estados membros”.
Esta decisão foi contestada pelo presidente da Federação Europeia de Jornalistas que considerou esta medida como um ato de censura que só pode ser tomada por cada Estado de forma individual. À margem desta decisão, a Polónia prendeu o jornalista basco Pablo González sob a acusação de espionagem pró-russa.
Sanções contra artistas e desportistas
Para além das sanções económicas e das medidas políticas, várias organizações mundiais aderiram a onda de russofobia e decidiram penalizar artistas e desportistas que não têm qualquer relação com a intervenção militar. A FIFA excluiu a Rússia de várias competições internacionais, o Comité Olímpico Internacional impediu os atletas paralímpicos de participar nas olimpíadas e houve medidas contra artistas em diversos cenários do mundo das artes. A Ópera Estatal da Baviera, de Munique, cancelou os compromissos que tinha com destacados artistas russos como Valeri Guerguiev e uma das cantoras líricas mais destacadas da atualidade, Anna Netrebko, sob o pretexto de uma “falta de distância” com as decisões políticas da Rússia.