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As veias que o imperialismo abriu

Houve quem achasse que a América Latina, enquanto pátio traseiro dos Estados Unidos era algo do passado, o intervencionismo das duas últimas décadas não deixa lugar a dúvida: o imperialismo norte-americano, com ou sem o apoio da União Europeia, continua a deixar vítimas por onde passa.

Diz-se que os norte-americanos são conhecidos como gringos a sul do rio Grande porque na guerra com o México, aos seus batalhões vestidos de verde insultava-se-lhes ao grito de “green go”. Foi precisamente durante esse conflito que os Estados Unidos foram invadidos pela primeira e única vez na sua história.

Em março de 1916, quase 500 soldados liderados por Pancho Villa atacaram Columbus, numa batalha com cerca de 70 mortos em cada um dos lados. Se as duas partes reclamam ainda hoje a vitória no relato desse confronto militar, o que choca é a singularidade do feito diante do incontável número de vezes que os Estados Unidos agrediram, direta ou indiretamente, países latino-americanos. 

Só entre 1891 e 1912, Washington invadiu 16 vezes vários países, sobretudo da América Central e Caraíbas, para impôr o seu dominínio político e económico.

A década da esperança

Como resposta ao ciclo neoliberal na América Latina, durante as décadas de 80 e 90, quando Reagan e George Bush ocuparam a Casa Branca, os povos de vários países viraram o século apoiando projetos políticos progressistas, democráticos e soberanistas. Desde que Hugo Chávez ganhou as eleições presidenciais em 1998, somando a Venezuela à isolada Cuba, diversos governos latino-americanos passaram a pôr no centro das suas políticas a nacionalização de setores estratégicos, sobretudo os energéticos. A diversificação da economia num continente desenhado a régua e esquadro pelos interesses geoestratégicos das ex-potências coloniais e pelos Estados Unidos passou a ser prioridade, a par do multilateralismo nas relações externas. 

Depois da ‘revolução bolivariana’, o operário brasileiro Lula da Silva candidatou-se novamente à presidência do Brasil em 2002 e ganhou. Numa entrevista ao Folha de São Paulo, o diretor do jornal perguntou ao candidato do PT como é que ambicionava governar o Brasil se não sabia falar inglês. Lula da Silva questionou o jornalista se alguém já teria perguntado a Bill Clinton se falava português.

No mesmo ano em que a esquerda chegou a Brasília, Nestor Kirchner encabeçou a presidência na Argentina. Em 2005, foi a vez do recém-falecido Tabaré Vázquez no Uruguai e no ano seguinte multiplicam-se os governos não alinhados: Nicarágua, Honduras e Bolívia. A este processo que cresceu até 2009, juntaram-se o Equador, o Paraguai e El Salvador.

Os suspeitos do costume

“Por que é que nos Estados Unidos não há golpes de Estado? Porque lá não há embaixadas norte-americanas”. É uma anedota muito popular que ilustra o que pensam muitos latino-americanos da influência norte-americana na região. 

Em 2002, dias antes do golpe apoiado pelos Estados Unidos contra Hugo Chávez, a administração norte-americana declarava que o presidente venezuelano não estava a considerar os interesses de Washington em Caracas. O certo é que o líder bolivariano só conseguiu regressar ao Palácio de Miraflores graças à união cívico-militar que derrotou a operação de um setor do exército promovido pela oligarquia venezuelana com o apoio dos suspeitos do costume. A vitória das forças chavistas deu oxigénio às alternativas no continente que tiveram de enfrentar oposições a que nunca faltou dinheiro e assessoria de Washington. 

Em junho de 2009, soldados hondurenhos invadiram a casa do presidente Manuel Zelaya a meio da noite para o levar preso e expulsaram-no do país para impedir um referendo não vinculativo para a convocatória de uma assembleia constituinte que produzisse uma nova constituição. Desde então, morreram assassinados milhares de hondurenhos em protestos contra os governos anti-democráticos e de duvidosa legitimidade de Roberto Micheletti, Porfirio Lobo e Juan Orlando Hernández, cuja eleição foi contestada por vários países latino-americanos.

No ano seguinte, foi a vez de um protesto policial que reivindicava aumentos salariais se transformar em golpe de Estado no Equador. Para além da ocupação de um quartel, vários militares bloquearam o Aeroporto Internacional Mariscal Sucre, já desativado, e as manifestações estenderam-se pelo país com cortes de estrada e distúrbios. Depois de tentar conversar com alguns polícias, Rafael Correa teve de se refugiar num hospital que foi cercado pelas forças policiais. Só uma operação militar conseguiu furar o bloqueio e repôr a normalidade depois de meia hora de tiroteio.

Em 2012, um golpe de novo tipo tomou forma na América Latina com o objetivo de derrubar governos não alinhados com os interesses de Washington. Eleito em 2008, o ex-bispo católico Fernando Lugo chegou à presidência do Paraguai rompendo com seis décadas do conservador Partido Colorado à frente do governo, em que 35 anos foram de ditadura militar. Para alcançar a vitória, a Aliança Patriótica para a Mudança formou uma coligação entre setores populares e partidos políticos, inclusive com o Partido Liberal.

Avanços em relação à soberania energética e à saúde pública puseram a oligarquia e Washington em alerta. Além disso, houve avanços na integração regional, com a participação ativa do país na Unasul (União das Nações Sul-Americanas) e no Mercosul (Mercado Comum do Sul). Este era um momento de alianças entre os diversos governos soberanistas da região: Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador, Venezuela e o próprio Paraguai.

No entanto, o mandato de Lugo durou apenas três anos e dez meses, e foi interrompido bruscamente por um golpe de Estado, camuflado por um processo de julgamento político, conduzido por um parlamento de maioria opositora, que o depôs em menos de 24 horas.

“A oligarquia e a direita são sempre muito solidárias e bem coordenadas a nível regional e local quando estão em jogo os seus próprios interesses”, afirmou Lugo ao Brasil de Fato, citando multinacionais do setor do agronegócio como forças que impulsionaram o golpe paraguaio. 

Milhares de paraguaios protestaram contra a decisão e foram recebidos com gás lacrimogéneo e jatos água. A televisão pública foi tomada nessa mesma noite por agentes da polícia paraguaia que impediram que o canal transmitisse imagens dos protestos. A maioria dos governos sul-americanos de então classificou a destitituição como golpe de Estado.

Três anos depois, em 2015, foi a vez de o parlamento brasileiro iniciar um processo semelhante contra a presidente Dilma Rousseff. Para além das acusações contra Lula da Silva, numa operação político-judicial que foi desmontada por milhares de mensagens trocadas pelos procuradores, juízes e advogados do caso divulgadas pelo jornal online Intercept, a ex-presa política foi acusada pelos deputados de direita de ter efetuado procedimentos orçamentais ilegais, a famosa “pedalada fiscal”, que na verdade era uma prática comum nos governos de Fernando Henriques Cardoso, Lula da Silva e, até, de Jair Bolsonaro.

Em agosto de 2016, Dilma foi destituida e substituída pelo vice-presidente Michel Temer, abrindo caminho à vitória eleitoral da extrema-direita. 

Mas isto não significa que o imperialismo tenha apostado por vias menos violentas. O mais recente golpe contra Evo Morales na Bolívia, derrotado entretanto pela vitória presidencial de Luis Arce mostra como estas intervenções nada têm a ver com democracia. Desde que Hugo Chávez morreu, em 2013, os Estados Unidos, com o apoio da União Europeia, trataram de derrubar Nicolás Maduro por todos os meios. Asfixia económica através de um bloqueio internacional, subversão institucional, atentados terroristas e o já habitual golpe militar clássico.

Colômbia, ponta-de-lança dos Estados Unidos

Antonio Caballero, do El Espectador, que veria o seu diretor assassinado e a redação despedaçada por uma bomba num país que encabeçou durante décadas o ranking de jornalistas assassinados no mundo, exclamava: “o rio Magdalena é a coluna vertebral da Colômbia e por ele já só descem cadáveres de homens assassinados”. As principais vítimas eram, com a cumplicidade da oligarquia e do Estado, sindicalistas e comunistas. Pouco mudou.

Nos anos 80, o processo de paz entre as FARC, o ELN e o governo de Belisario Betancur com a participação destas organizações e do Partido Comunista Colombiano abriram caminho à esperança. Surgiu então o partido de esquerda União Patriótica. Mais de cinco mil membros desse partido foram assassinados, entre os quais dois candidatos presidenciais, oito deputados nacionais, 13 deputados regionais, 11 presidentes de autarquias e 70 vereadores.

Agora, depois da decisão das FARC de entregar as armas, já foram assassinados 242 ex-combatentes que confiaram na palavra do governo colombiano. Com uma guerra civil imparável que opõe guerrilhas de esquerda contra narcotraficantes, paramilitares e forças armadas, geralmente, cúmplices, de acordo com acusações de associações de direitos humanos, a Colômbia era em 2014 o segundo país do mundo com mais deslocados internos a seguir à Síria. Mais de 6 milhões de pessoas que procuram escapar da violência.

A guerra ininterrupta que assola o povo colombiano, desde que, em 1948, assassinaram o candidato presidencial liberal Jorge Eliécer Gaitán, tem nas suas origens a propriedade da terra. A maré humana que ainda hoje abandona os campos agrícolas ameaçada pelo terror latifundiário e narcotraficante não tem outra opção senão fugir para as cidades ou ingressar na guerrilha. O Estado, desde cedo, tomou a decisão de apoiar a oligarquia e de votar os camponeses ao abandono.
A Colômbia é o ponta-de-lança continental do imperialismo e recebe, há mais de meio século, o apoio financeiro, logístico e militar dos Estados Unidos, através de acordos assinados entre os governos dos dois países ao longo das décadas. Atualmente, a Colômbia tem o maior número de efectivos militares de toda a América Latina. 
Desta barbárie de contabilidade incerta diz-se que a guerra pode ter levado à morte de quase 300 mil pessoas em meio século, 8 mil só durante os dois mandatos de Alvaro Uribe, de acordo com o El País.

Cuba, tão perto do inferno

Em maio de 2018, morreu em liberdade aos 90 anos o cubano Luís Posada Carriles. Depois da revolução cubana, participou em ações terroristas contra o processo em curso e fugiu para os Estados Unidos onde foi treinado pelo exército norte-americano, antes de se tornar agente da CIA. Participou na invasão derrotada em 1961 em Playa Giron. Foi um dos operacionais da Operação Gladio, em que confluíram forças parapoliciais de vários países, sobretudo europeus, em conjunto com grupos de extrema-direita em atentados e outro tipo de ações.

Em 1976, a explosão de uma bomba na embaixada cubana em Lisboa vitimou dois diplomatas. Nesse ano, outro explosivo fez cair o avião 455 da Cubana de Aviación com 73 passageiros a bordo, sem sobreviventes. Luís Posada Carriles foi um dos responsáveis.

Já nos anos 90, os Estados Unidos financiam uma vaga de atentados contra hotéis em Havana com o objetivo de assustar o turismo e de asfixiar ainda mais a economia cubana. Sufocada por um bloqueio imposto por Washington a todas as empresas estrangeiras que façam trocas comerciais com Cuba, o país encabeça ainda assim indicadores sociais no continente através das políticas públicas de um governo socialista.

Mas o imperialismo recorre a todos os meios para fazer sofrer quem vive em Cuba. A guerra biológica foi um dos instrumentos para destabilizar a ilha, através da introdução de doenças aparentemente criadas em laboratório. Grande parte nunca tinha sido detetada no país. Os arquivos das décadas de 70 e 80 estão cheios de fotografias de crianças com mal-formações. Muitos ajudam a enquadrar a historia da resistência cubana no Museu da Revolução em Havana. 

Em 1984, o contra-revolucionário de origem cubana Eduardo Arozarena, dirigente da organização Omega-7, confessou, num julgamento nos Estados Unidos, ter introduzido germes como parte da guerra biológica contra Cuba. Afirmou que a introdução da dengue hemorrágica causara 158 mortes em 1981. Um livro publicado em 1993 pelo ex-agente da CIA, William W. Turner, e pelo jornalista Warren Hinckle assumia o recurso a este tipo de agressão durante a administração Nixon.

O assédio permanente dos Estados Unidos contra Cuba é o retrato da incapacidade de respeitar a vontade dos países por parte da maior potência militar da história.

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