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Chumbo do OE. PS vira costas ao diálogo

O chumbo da proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2022 não aconteceu por geração espontânea. Os sucessivos entendimentos, nos últimos anos, são uma história de avanços e conquistas, mas também de recuos, desencontros e de compromissos do PS com Bruxelas e com os grandes grupos económicos e financeiros.

Em “Quem matou a geringonça?”, artigo de opinião publicado no Diário de Notícias, o jornalista Pedro Tadeu recordou como, ao longo de seis anos, o ministério das Finanças usou, “de forma sistemática, excessiva e arbitrária, cativações de verbas e eliminou na prática o financiamento atempado de muitas medidas que tinham sido acordadas com os partidos que viabilizavam o governo de minoria, deu rajadas de metralhadora na geringonça”.

O mesmo jornalista sublinhou a distância entre os diferentes partidos nas alterações ao Código do Trabalho em 2019. O período experimental passou de 90 para 180 dias, os patrões viram reforçadas as possibilidades de ficarem livres das regras da contratação coletiva ao ampliar os motivos para a caducidade dos acordos feitos entre sindicatos e patrões, prejudicando a capacidade de negociação dos trabalhadores. Simultaneamente, acusou o secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, Tiago Antunes, de mentir na televisão ao dizer que o PCP exigiu, sem cedências, a subida do salário mínimo para 850 euros já em janeiro, quando na verdade, como revelaram os comunistas, aceitou 705 euros no início do ano e apenas 800 euros no final de 2022.

A origem do entendimento entre a esquerda e o PS

Em outubro de 2015, a coligação entre o PSD e o CDS-PP, encabeçada por Pedro Passos Coelho e Paulo Portas, ficou à frente do PS nas eleições legislativas mas perderam a maioria na Assembleia da República. Depois de vários anos de efervescência social, contra a austeridade de José Sócrates primeiro e o governo alinhado com a troika depois, os partidos à esquerda do PS aumentaram o número de deputados e fizeram inclinar a balança parlamentar. Foi Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP, que proclamou a sentença que derrotou a continuidade do anterior executivo: “O PS só não forma governo se não quiser”.

Sem vontade de dar posse a um executivo PS, Cavaco Silva exigiu um acordo assinado pelas várias partes como condição para a viabilidade de um governo liderado por António Costa. BE, PCP e Verdes negociaram e aprovaram entendimentos separados com o PS. Foi assim que se inaugurou uma fase política de recuperação e avanços, segundo a esquerda, que deixou para trás muitas das medidas impostas pela troika ao país com a anuência do PSD e CDS-PP.

Reposição e conquista de direitos

Durante décadas, o PS tinha protagonizado governos que, em solitário ou com o apoio de elementos ou partidos de direita, aprofundaram uma linha neoliberal de privatizações e recuos nos direitos dos trabalhadores. Desta vez, condicionado pela esquerda, houve avanços e reposição de direitos, apesar das amarras do executivo à lógica da União Europeia.

Algumas medidas que marcaram o último mandato e meio

Reposição salarial e de outros direitos como feriados, complementos de reforma aos trabalhadores do sector empresarial do Estado; aumento do salário mínimo nacional; reposição dos instrumentos de contratação coletiva no setor público empresarial e eliminação das restrições à contratação de trabalhadores na Administração Local; reversão das privatizações da Carris, do Metropolitano de Lisboa e dos STCP e, parcialmente, da TAP; redução significativa do preço dos transportes públicos e alargamento dos passe sociais intermodais; fim dos cortes nas pensões e aumento extraordinário em quatro anos consecutivos; reposição integral da lei da IVG; valorização do abono de família, alargamento do abono pré-natal e do apoio às pessoas com deficiência; ampliação da proteção aos desempregados, com a criação do apoio aos desempregados de longa duração e eliminação do corte no subsídio de desemprego; reposição do pagamento por inteiro do subsídio de Natal; valorização das longas carreiras contributivas e melhoria das condições de acesso à reforma dos trabalhadores das minas e das pedreiras; na Administração Pública, reposição das 35 horas e direito à progressão na carreira e a tomada de medidas de combate à precariedade; redução do valor das propinas e reforço das componentes da Ação Social Escolar; a gratuitidade dos manuais escolares nos 12 anos da escolaridade obrigatória; redução das taxas moderadoras, contratação de médicos e enfermeiros, redução de custos com os medicamentos, inscrição de novas vacinas no Plano Nacional de Vacinação; gratuitidade de acesso aos museus, aos domingos e feriados, reforço do apoio às artes e à criação artística, a redução do IVA dos espetáculos e dos instrumentos musicais; criação do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade; alívio do IRS sobre rendimentos do trabalho, criação de dois novos escalões e alargamento do mínimo de existência, eliminação da sobretaxa; redução do preço da energia; redução do IVA na restauração e eliminação do Pagamento Especial por Conta; corte nos benefícios aos fundos imobiliários, tributação do património imobiliário de mais elevado valor com a introdução do adicional do IMI e aumento da tributação sobre os grandes lucros por via do aumento da derrama estadual do IRC.

Quando o PS não cumpriu aquilo que foi acordado

Apesar dos avanços, cedo perceberam os partidos de esquerda que para além das negociações e da aprovação de medidas na Assembleia da República havia que pressionar o governo para a sua execução. Essa pressão fez-se sentir no âmbito parlamentar mas também nos locais de trabalho. Um desses exemplos foi a luta pela aplicação do programa de regularização extraordinária dos vínculos precários na Administração Pública (PREVPAP).

Já não eram só as negociações sobre as medidas e o seu alcance mas também a sua implementação. Os partidos à esquerda do PS mostraram mal estar e já em 2020 o PCP sublinhava que importava adotar “outras medidas e opções que estão para lá da matéria orçamental e que requerem a mobilização de instrumentos, meios e políticas que o governo PS persiste em não assumir”. Os comunistas denunciaram, então, que os primeiros quatro meses de execução orçamental mostravam que o governo não estava “a utilizar toda a capacidade orçamental” que tinha “para dar resposta aos problemas nacionais”. E pior. Estava “a limitar” a execução do Orçamento. Se o voto contra do BE, em 2020, foi justificado sobretudo pela falta de investimento no Serviço Nacional de Saúde, o PCP defendia a abstenção como marca de “um distanciamento face a opções e critérios assumidos pelo governo” afirmando que não bastava aprovar propostas na Assembleia da República. Tão ou mais importante seria “a vontade política para concretizar medidas que dessem expressão à resposta que se exigia”.

À medida que aumentava a tensão entre os partidos à esquerda do PS e o governo pelo incumprimento dos acordos, o grupo parlamentar liderado por Ana Catarina Mendes não mudou o registo habitual. Um olhar sobre as vezes em que as votações do PS coincidiram com as de outros partidos é elucidativa. Apesar de recorrer aos deputados à sua esquerda para viabilizar orçamentos, o PS votou ao lado do PSD na maioria das vezes. Isso aconteceu em 1535 ocasiões. De seguida, ao lado do CDS-PP (1175), PAN (1123), IL (1122) e só depois o BE (1107). No fundo da tabela, o PS só votou da mesma forma que o PCP em 1079 momentos.

São muitos os exemplos de medidas que não foram implementadas no prazo acordado ou que não foram concretizadas de todo. Os Subsídios Extraordinários de Risco para os trabalhadores da saúde e dos serviços essenciais deixaram de fora muito profissionais, a contratação de pessoal nas várias áreas (saúde, educação, forças e serviços de segurança, justiça, proteção civil) não foi concretizada nos prazos e nos números de admissões previstos e os investimentos nos cuidados de saúde primários e nos hospitais tardaram em ser concretizados e a esquerda denunciou a teia de autorizações e despachos do ministério das finanças que impedem a sua implementação. A execução dos apoios previstos para o setor da cultura continuava a excluir uma grande maioria dos trabalhadores do setor quando a denúncia foi feita.

Esquerda chumba Orçamento de Estado

Em 2020, o BE rejeitou a viabilização do OE deste ano e, em março, o PCP votou contra o OE suplementar. Este ano, no processo de negociação da proposta, BE, PCP e Verdes denunciaram a falta de vontade de diálogo do governo. 

Os bloquistas viram rejeitadas nove propostas que pretendiam ver no OE para 2022. Exclusividade para os trabalhadores do SNS e incentivos à adesão, criação da carreira de técnico auxiliar de saúde, autonomia dos hospitais públicos para contratarem trabalhadores, reposição do pagamento das horas extraordinárias, reposição dos 25 de férias, fim da caducidade dos contratos coletivos de trabalho, reposição do princípio do tratamento mais favorável, fim da penalização na reforma para quem tem mais de 40 anos de descontos e recálculo das reformas atribuídas entre 2014 e 2018 para eliminar penalizações que já não estão em vigor.

Por sua vez, os comunistas denunciaram também não haver luz verde para aumento das reformas em 658 euros, reforma por inteiro e sem penalizações para quem tenha 40 anos de descontos, acabar com todos os cortes impostos pela troika, estimular a fixação no SNS, travar a privatização na saúde, nem mais consultas, exames, cirurgias e profissionais de saúde. O PCP denunciou ainda que o governo pretendia criar dois novos escalões no IRS que exluiam quem recebe até 1000 euros de qualquer alívio fiscal. Também recusou aliviar as pequenas e médias empresas assim como tributar de forma justa os elevados rendimentos e património. Seis anos depois, o PS tampouco revogou a lei das rendas.

Pelo seu lado, o PS acusou estes partidos de pôrem em risco a estabilidade financeira do país. Contudo, no ano passado, o PCP avançou com cinco propostas para financiar os gastos do Estado: englobamento no IRS para todos os rendimentos a partir de 100 mil euros, eliminação de vários benefícios fiscais atribuídos ao grande capital e à especulação, taxação das transferências para os paraísos fiscais e a tributação em Portugal dos lucros e dividendos de grandes grupos económicos, escalão intermédio na derrama estadual de 9% para os lucros entre 20 e 35 milhões de euros e resgatar as Parcerias Público Privadas, que resultaria em mil milhões de euros por ano.Foi este o caminho para o chumbo da proposta de Orçamento do Estado para 2022.

Importa agora saber quais vão ser os passos seguintes, se o regresso do PS aos braços dos seus aliados de sempre, PSD, se uma tentativa de superar a atual crise com os partidos à sua esquerda ou uma rutura democrática cuja solução passa por dar voz à maioria da população, os trabalhadores.

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