Germinal, a juventude que constrói futuro

Em Portugal, ao mês de março associou-se a memória dos jovens que durante o fascismo combateram a violência do regime. Como no livro de Émile Zola, as sementes que fazem rebentar a terra brotam no Germinal, o mês inventado pelos revolucionários franceses, em 1792, para evocar o início da primavera, tratam de construir o futuro. Sem esquecer o passado, são muitos os jovens que, hoje, fintam os cantos de sereia da apatia e do individualismo de quem quer impôr limites à irreverência.

São três da tarde na Reboleira. No Estádio José Gomes, o Estrela da Amadora defronta o Belenenses na última divisão das distritais do futebol nacional. É literalmente a liga dos últimos. Longe dos holofotes dos clubes geridos como empresas, sete mil adeptos, jovens na sua maioria, cantam e animam as bancadas numa festa que cheira a cerveja e entremeada. No meio da Fúria Azul, André Pagaime torce pela equipa de Belém. 

O retrato de uma juventude conformista não encaixa no perfil deste jovem de 25 anos que aproveita cada segundo do seu tempo para se envolver em todo o tipo de atividades. Na Moita, onde vive, participa na Associação de Moradores do Bairro Novo, é membro da Comissão de Festas do Chão Duro, ajudou a fundar a Banda Filarmónica do concelho onde toca e é praticante, treinador e um dos principais dirigentes das associações nacionais de pelota e pelota basca. No tempo que sobra tenta impulsionar um grupo de esperanto na Moita, um dos idiomas que aprendeu, e faz parte da claque do Belenenses.

“Quando comecei a jogar pelota não existia nada perto. Então, tive que ligar a modalidade a um clube e passei a integrar a direção, depois com os anos fui entrando para as estruturas nacionais das associações que representam a modalidade, penso que pelo trabalho que tenho feito na modalidade. Na banda foi a mesma coisa. A Moita não tinha Banda Filarmónica há quase 40 anos e um grupo de músicos como eu, que tocavam noutros lados, decidiu arrancar e ficamos à frente do projeto”, explica André. Depois, ficou-lhe o “bichinho de fazer e organizar coisas” e passou a colaborar com a Comissão Festas Populares e com a Associação de Moradores.

O jovem descreve que treinou e jogou com centenas de jovens que puderam praticar uma modalidade gratuita quando a maioria é paga. O mesmo acontece com as aulas de música que dá. “Sem este trabalho, e de tantos outros, centenas de crianças estariam privadas de direitos tão básicos como o acesso ao desporto e à cultura. Dá-me motivação ver jovens que entraram com 15 e 16 anos que passado pouco tempo começam a ensinar os mais novos”, explica.

Uma das coisas mais importantes, descreve o jovem, foi ter conhecido centenas de pessoas no país e no mundo. Sobretudo, “trabalhar em equipa para realizar coisas que à partida parecem impossíveis”. Mas assume que isso nem sempre é possível se não houver determinados apoios. “Penso que tive a maior sorte do mundo em desenvolver a minha atividade no concelho da Moita. Só não fazem pelo desporto e pela cultura aquilo que não podem. Acho que a Câmara Municipal e a Junta de Freguesia entendem muito bem que muitas vezes é o movimento associativo a garantir à população valências que deveriam ser responsabilidade do poder central. O acesso à cultura e ao desporto, se não fossem promovidos pelo município e desenvolvido pelo movimento associativo, seria nulo”, denuncia.

André Pagaime não tem dúvidas. A participação associativa dos jovens “é fundamental numa democracia”. Para o jovem, colocar um voto na urna é sem dúvida fácil. “O difícil é trabalhar todo o ano em prol da comunidade de forma voluntária e com todos os obstáculos que se levantam ao movimento associativo”.

A chama inesgotável da luta 

estudantil

Ano após ano, desde 1962, comemora-se o 24 de março, um marco histórico na luta dos estudantes portugueses contra o fascismo, pelo direito de reunião e de associação, pela autonomia das universidades e pela democratização do ensino. Em manifestações e greves os jovens enfrentaram proibições, encerramento de associações de estudantes, cargas policiais, prisões em massa e expulsões. Quando assumir uma posição era arriscar a vida, a chama estudantil incendiou a luta antifascista.

Este ano, os estudantes do ensino secundário assumiram o repto de fazer deste dia não apenas um exercício de memória mas também uma jornada de luta no dia 20 de março sob o lema Pela Escola Pública, Gratuita, Democrática e de Qualidade, organizada pela plataforma É Agora, lançada pela Escola Secundária de Camões e pela Escola Secundária António Arroio. Até ao momento, mais de 20 associações de estudantes subscreveram o apelo de sair à rua que recorda também que se assinala este ano o 45.º aniversário da revolução de Abril. Entre as principais reivindicações, os estudantes exigem obras nas escolas, mais professores e funcionários, fim da municipalização, revogação do estatuto do aluno e fim dos exames nacionais.

Samuel Bento, um dos dirigentes associativos que impulsionaram o documento, é o presidente da Associação de Estudantes da Escola Secundária de Camões, em Lisboa. Com 17 anos, a estudar Ciências e Tecnologia no 12.º ano, diz que sempre gostou de estar ativo na escola. Quando saiu da Escola Básica Patrício Prazeres, envolveu-se no Movimento Camões. “É um espaço onde muitos estudantes acabaram por se envolver na organização de debates, iniciativas e festas”, afirma o estudante. 

No ano anterior, já tinha participado numa lista que não ganhou as eleições para a Associação de Estudante e, este ano, o projeto que encabeçou acabou por recolher a maioria dos votos. “É algo que envolve muita responsabilidade. Defender os estudantes e defender direitos, entre as muitas outras atividades, sem grande apoio financeiro”, explica. Considera também que há muitos entraves à democracia em várias escolas e fala de interferências intoleráveis de direções em processos eleitorais e reuniões gerais de alunos e verdadeiros atos de repressão e perseguição de estudantes. Não é atualmente o caso da Escola Secundária de Camões, em que alunos, professores e funcionários não docentes estão unidos na luta por obras de fundo no estabelecimento de ensino. Em janeiro deste ano, 700 alunos desfilaram até à Assembleia da República para exigir uma intervenção urgente num edifício centenário que já teve obras programadas para 2011. “Para os bancos vão milhões, para as escolas vão tostões”, denuncia Simão.

Enquanto dirigente associativo estudantil, sente que é uma experiência que marca. “Acabamos por ter mais confiança em nós próprios, por termos esperança de que de forma organizada o mundo é nosso, que fazemos a diferença. Mas não precisamos de ser dirigentes para lutar, nem devemos ter medo de lutar”, afirma. “Como ouvi uma vez Arménio Carlos dizer, a única coisa que cai do céu é chuva, o resto é luta”.

A força do trabalho 

na consciência juvenil

Se é certo que muitos jovens ganham consciência enquanto estudantes, também é certo que as contradições se avolumam quando o contexto mostra a verdade como punhos. Os dias tornaram-se azedos para Diogo Correia quando entrou para o curso de Comunicação e Cultura da Faculdade de Letras, em Lisboa, e se viu confrontado com a realidade. “Com os elevados custos do ensino superior e, por outro, com o facto de me ter sido negada a bolsa. Como aquela faculdade também tem tradição de luta, foi relativamente fácil o meu envolvimento no movimento associativo estudantil”, explica. 

Nascido nas Galinheiras, um dos bairros mais pobres de Lisboa, tinha estudado na Musgueira, Odivelas e Póvoa de Santo Adrião. Aos 27 anos, conta como teve contacto com o mundo do trabalho num verão quando o pai estava desempregado. “Trabalhei num centro de contacto em part-time, à noite, com contrato precário e um salário de 200€ por quatro horas de trabalho diárias. Penso que tudo isto me ajudou a desenvolver a minha consciência e tomar a decisão de que teria de fazer alguma coisa”.

Em 2012, com o país no precipício da troika, não encontrou trabalho na área que queria, jornalismo. Tudo o que encontrava eram estágios a tempo inteiro a troco de pouco mais do que 100 euros por mês. Decidiu trabalhar numa gráfica onde esteve dois anos com contratos a prazo. “Foi lá que me sindicalizei pela primeira vez, sem assumir tarefas. Mais tarde, fui trabalhar como eletricista e assumi responsabilidades como dirigente no meu sindicato, o SIESI, e na Interjovem, porque acredito que posso acrescentar a minha força e o meu contributo individual ao de muitos outros para melhorar a vida de quem trabalha e transformar a sociedade”.

O jovem sindicalista considera que os jovens trabalhadores convivem, hoje, com o flagelo da precariedade, dos baixos salários e dos horários desregulados. “Temos milhares de trabalhadores no nosso país a ocuparem um posto de trabalho permanente mas com uma situação extremamente precária, sem saberem quando vão trabalhar nem quanto vão receber ao fim do mês. Os salários não chegam para os jovens se emanciparem e cumprirem os seus objetivos mais básicos como sair de casa dos pais ou constituir família. Os preços da habitação estão inflacionados e inacessíveis à maioria dos jovens. Sucessivos governos falam da necessidade de aumentar a natalidade, mas não dão as condições para que os jovens possam concretizar esses sonhos”.

Apesar de todos os obstáculos que se levantam e que também “prejudicam a ação sindical”, Diogo Correia afirma que há muitos jovens “a tomar a dianteira da luta e a exigir mudanças”. Hoje, há milhares de trabalhadores com vínculos precários organizados nos sindicatos da CGTP. “Organizados, a lutar e a conseguir conquistar direitos. Quem imaginaria isto há 15 anos?”, questiona. “Claro que a ideologia dominante procura impor a ideia de que os jovens são apáticos e que não intervêm, mas não corresponde à verdade. Tanto é assim que o sistema procura canalizar sentimentos justos dos trabalhadores para a luta supostamente inorgânica e certamente inconsequente. É por isso que precisamos de estar constantemente nas bases, nas empresas, a ouvir o que os trabalhadores têm para nos dizer e canalizar os seus sentimentos para a luta organizada e consequente”. 

E 72 anos depois da repressão que se abateu sobre as centenas de jovens do Movimento de Unidade Democrática Juvenil que se conviviam a 28 de março em Bela Mandil, no Algarve, os trabalhadores jovens de hoje preparam uma manifestação com a mesma data rumo à Assembleia da República a partir do Rossio, sob o lema Não somos descartáveis! Temos direitos! Queremos estabilidade!. “É o Dia Nacional da Juventude e faz todo o sentido continuar a comemorá-lo em luta, não para cumprir calendário, mas porque os motivos que estão na sua origem ainda se mantêm. O voto é importante, mas a democracia e a liberdade não se esgotam aí. A democracia não pode ficar à porta do local de trabalho. A precariedade e os baixos salários limitam a participação social. Surge o medo de perder o emprego e a seguir a repressão para não se exercerem direitos no local de trabalho ou até mesmo fora dele. Muitos jovens têm dois empregos para fazer face às despesas e, muitas vezes, vivem uma vida que não lhes permite sequer ter tempo para reflectir, para ter esta ou aquela atividade, para ler um livro ou ir a um cinema”.

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