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Pobreza

Distribuição desigual dos rendimentos está na origem da pobreza

Há cerca de 1,7 milhões de pessoas em risco de pobreza em Portugal. Destes, 47% trabalha e recebe um salário. São números avassaladores quando as pessoas sem abrigo crescem 78% em comparação com 2018. Um autêntico barril de pólvora num país em que as profundas desigualdades sociais se manifestam, sobretudo, devido à distribuição desigual da riqueza.

Lisboa amanhece de lavado depois de um dia passado a chuva. Depois de dar banho ao pai, de 89 anos, Alcina Lourenço aquece água e prepara-lhe o pequeno almoço e a medicação quando é surpreendida por fortes murros na porta. A polícia avisa-a de que se não a abrir têm de a arrombar à força. Do lado de fora, mais de uma dezena de homens fardados e um agente de execução, segundo Alcina, que dá 10 minutos para abandonarem a casa. Do lado de dentro, uma vida inteira para despejar num piscar de olhos. 

Quando A Voz do Operário chega ao número 34 da Rua de Arroios, esta mulher é uma ilha de lágrimas rodeada de caixotes na entrada do prédio. Acaba de cruzar pela última vez a porta da casa onde vivia desde os seis anos de idade. O pai, de cadeira de rodas, aguarda no apartamento de uma vizinha depois de ter sido posto no hall de entrada. De acordo com Alcina, não apareceu nenhum assistente social nem ninguém da autarquia esta manhã que pudesse garantir uma alternativa a esta família. Não sabe onde é que vão dormir esta noite.

O despejo estava inicialmente marcado para 3 de outubro e foi cancelado devido à mobilização de movimentos que se juntaram no local para impedir a intervenção policial. “Andei a pedir ajuda a associações e mandei várias cartas ao senhorio mas não me respondeu. Hoje, veio o tribunal e disse-me que tinha de sair”, afirma Alcina à Voz do Operário. “[Há semanas], propuseram uma solução que não dava condições ao meu pai e eu recusei”, justifica.

Alcina vivia com o pai e uma tia desde pequena. A familiar morreu há cinco anos e, como a casa estava arrendada no nome da tia, o proprietário decidiu despejar o resto da família. Quando a polícia lhe bateu à porta, preparava-se para trabalhar. “Faço umas horas para poder sobreviver, além da reforma do meu marido e do meu pai”. O proprietário pediu um aumento da renda e Alcina fez uma contraproposta explicando que tinha o marido doente. Segundo a própria, nunca terá deixado de pagar o aluguer, mesmo com o contrato em nome da tia.

Do outro lado da rua, do Areeiro até ao Martim Moniz, sobretudo na Avenida Almirante Reis, multiplicam-se as tendas com pessoas sem abrigo, muitas vezes apenas com um saco-cama. Em julho, o Público noticiava que os pedidos de despejo por parte de proprietários tinham aumentado 22,6% no primeiro semestre de 2023 face a igual período do ano anterior. Foram 1412 os requerimentos de procedimento especial de despejo que deram entrada no Balcão Nacional de Arrendamento entre janeiro e junho deste ano. Em quatro anos, segundo o Expresso, o número de sem abrigo cresceu 78%. São 10.773 pessoas a viver na rua face aos 6044 de 2018.

Erradicar a pobreza

No dia 17 de outubro, Dia Internacional da Erradicação da Pobreza, os números voltaram a ilustrar a tragédia social que se vive no país. Em 2021, 1,7 milhões de pessoas estavam em risco de pobreza, com rendimentos inferiores a 551 euros mensais. O relatório da Rede Europeia Anti-Pobreza decifrou os dados e mostrou que destes 53,8% são mulheres, 57.6% têm entre 18 e 64 anos e 55,8% fazem parte de agregados familiares com crianças. É ainda mais dramático quando se pensa que estes números dizem respeito a 2021 e não refletem ainda as consequências do brutal aumento do custo de vida. Destas 1,7 milhões de pessoas, 47% está a trabalhar e recebe um salário. 

Fundado em 2014, várias figuras da sociedade encabeçaram o Movimento Erradicar a Pobreza (MEP) com o objetivo de rejeitar a pobreza e o empobrecimento do país, assim como as desigualdades sociais. De norte a sul, esta organização distribuiu um documento a denunciar a actual situação social. Em parceria com outras organizações sociais, esta estrutura tem vindo a trabalhar na sensibilização da população para o drama da pobreza e para as suas causas.

Deolinda Machado, antiga dirigente da CGTP-IN e atual presidente do Conselho de Opinião da RTP, sublinhou à Voz do Operário que o MEP continua a “alertar consciências” para que não se olhe com “indiferença” para a pobreza. “Como dizia o Professor Bruto da Costa, não podemos consentir com a realidade em que vivemos e considerarmos aceitável. Não podemos naturalizar nem ficar parados com o agravar das desigualdades sociais, por exemplo, na actualidade, na questao da habitação. A pobreza é um problema de todos e não pode ser considerada uma fatalidade de quem não teve sorte na vida”, destacou. Para Deolinda Machado, este é um problema “eminentemente político” e ter acesso à habitação, à alimentação e à saúde é “um direito humano”.

Em relação ao Orçamento do Estado para 2024, esta representante do MEP considerou que o movimento tem chamado a atenção para as várias dimensões da pobreza. “A começar pela falta de melhoria dos salários e pensões. Se isto não for actualizado e se os custos com a habitação e alimentação continuarem a aumentar, há aqui uma perda permanente. Os custos aumentam brutalmente e os acertos não correspondem. Vemos dois pesos e duas medidas. Procuramos que haja uma vida digna para todos. Não acontece o mesmo com os bancos e grandes superficies. Só no primeiro semestre de 2023, os bancos tiveram lucros de 11 milhões por dia e isto é inaceitável”, considerou. 

Entre vários exemplos de contradições, apontou para o aumento de 50% nas taxas de manutenção das contas dos reformados, quando os bancos foram ajudados pelo Estado quando foi necessário: “Quem ainda tiver uma poupança, esta não rende nada no banco mas se pedir empréstimos paga um juro alto”. Por outro lado, referiu que a pobreza não tem de ser hereditária e que a riqueza tem de ser redestribuída de forma digna para todos. 

Distribuição desigual na origem da pobreza

Para o economista Tiago Cunha, “a riqueza criada no nosso país permitia que a maioria da população do nosso país vivesse com melhores condições”. É assim que comenta os elevados índices de pobreza em Portugal. “Nós temos mais de 200 mil milhões de euros de riqueza criada no nosso país a cada ano. Aquilo que temos é uma distribuição da riqueza desigual. Se formos ver os dados que dizem respeito às condições de rendimentos das famílias e da própria distribuição do rendimento que cada ano é produzido, é aqui que temos a primeira grande desigualdade”, explica. Esta desigualdade, considera, coloca-se “entre a distribuição de riqueza entre os detentores do capital e os detentores da força de trabalho”. Uma boa parte da riqueza que é produzida no nosso país “vai para o grande capital”. 

Mas mesmo entre as empresas há diferenças, explica: “Nós temos níveis de concentração de lucros no nosso país que fazem com que 1035 empresas absorvam 41% dos lucros gerados por todas as sociedades não financeiras no país. Isto são níveis de acumulação gigantescos”. Para Tiago Cunha, são as empresas estratégicas como a EDP, a REN, a GALP, mas também do setor da grande distribuição. O objectivo, diz, é minimizar o mais possível os salários e maximizar o lucro para distribuir mais mais dividendos. Sobre o Orçamento do Estado para 2024, entende que as medidas que o governo tem tomado são pontuais e de carácter assistencialista e que o documento acentua essa dinâmica.

O economista recordou o efeito nulo do IVA zero que diz ter servido para garantir mais lucros para as empresas que absorveram a redução deste imposto. Agora, o governo vai recuar na medida e vai direcionar os apoios para as camadas mais desfavorecidas. “Isto à primeira vista colhe grande simpatia porque o IVA beneficiaria todos e agora vão direcionar aquela receita que se tinha perdido para apoiar as famílias mas estas medidas como outras pontuais não resolvem necessidades permanentes”, defende.

Outra das razões que faz deste um país fértil para a pobreza é o facto de haver baixos salários. “Um em cada dez trabalhadores empobrece a trabalhar. O aumento geral e significativo dos salários para todos os trabalhadores é uma questão fundamental”, recorda. Para Tiago Cunha, o desenvolvimento do país em todas as suas dimensões é importante e o salário é um factor que importa. “Não só porque os salários garantem a dinamização da procura e garantem à maioria das empresas escoamento dos seus produtos, mas também porque permite que todos os que queiram viver e trabalhar no nosso país o possam fazer e não emigrar”.

A perda do poder de compra dos trabalhadores da Administração Pública, exemplifica, tem efeito também sobre toda a sociedade. “São serviços públicos carentes de força de trabalho para garantir a sua atividade e a sua actividade é garantir direitos: direito à educação, direito à saúde, direito à segurança social. Há quem aproveite este ataque a estes direitos porque vêem nestes direitos uma fonte de negócio”.

Com os estudos a indicarem uma subida dos gastos das famílias em alimentação, habitação e transportes, Tiago Cunha considera que boa parte das famílias “tem um garrote à volta do pescoço”. E isto acontece em anos com crescimento recorde da riqueza produzida.

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