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Várias organizações contestam decisão do Tribunal Constitucional

Decisão polémica do Tribunal Constitucional, ainda por confirmar em plenário, indigna várias organizações, que entendem que legalizar o proxenetismo é um ataque ao direito à dignidade da pessoa humana.

Ilustração de Luís Alves

Em abril deste ano, o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se sobre uma rusga do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, em 2016, a um bar com mulheres prostituídas no concelho de Valpaços.

Segundo o Público, em declarações ao Tribunal de Vila Real, as dez mulheres que trabalhavam no Dancing Show explicaram que ganhavam à comissão pelas bebidas que os clientes pediam e recebiam 30 euros pelos atos sexuais, outros 10 ficavam para o casal que geria a casa. Então, a juíza de Vila Real decidiu absolver os donos deste bar invocando a posição de um ex-presidente do Tribunal Constitucional, Costa Andrade, que defendia que condenar promotores de lenocínio que não violam a liberdade sexual das mulheres prostituídas é um “exercício de moralismo atávico”, que não tem lugar numa sociedade secularizada e democrática.

Sobre este caso, o Tribunal Constitucional acaba de produzir um acórdão que dá razão à juíza e aos acusados. Parte dos conselheiros do Palácio Ratton defende que “a decisão de uma pessoa se prostituir pode constituir uma expressão plena da sua liberdade sexual” e que, portanto, não se deve condenar quem lucra com a prostituição através do proxenetismo se isso for feito de livre vontade.

Desde 2004 que o Tribunal Constitucional se tem vindo a pronunciar sobre esta questão e, até ao momento, só tinha havido uma decisão favorável a esta tese em 2020, que foi anulada em plenário de juízes depois do recurso do Ministério Público. Como nesse ano, este organismo voltou a recorrer da decisão para o plenário.

Mulheres contra descriminalização do proxenetismo

Ao Público, o Movimento dos Trabalhadores do Sexo saudou o acórdão do Tribunal Constitucional. Um dos seus representantes acredita que “as leis que existem devem ser alargadas a este sector laboral. As pessoas têm direito de trabalhar por conta própria e por conta de outrem”. Para Vítor Valente, “o que está em causa é uma violação de direitos humanos”. “Há um sector da população que está excluído de um conjunto de direitos, que não está abrangido pelas leis que previnem os abusos no trabalho, nem pelos direitos políticos. O Código Penal criminaliza indirectamente o trabalho sexual”. E acrescentou ao mesmo jornal que “muitas pessoas que trabalham por conta de outrem fazem-no por falta de meios para trabalhar por conta própria”. Mas tal, defende, “não significa que sejam coagidas a trabalhar”.

Contudo, essa não é a opinião do Movimento Democrático de Mulheres (MDM). De acordo com Sandra Esteves, dirigente desta organização, são 19 anos de decisões que “reiteradamente” fundamentam “a favor da constitucionalidade do artigo 169 do código penal que é o tal artigo que pune o lenocínio”. Por isso, entende que se tenta defender o direito ao lucro dos proxenetas mas que, em abstrato, o direito ao lucro, neste caso, “choca com o direito à dignidade da pessoa humana”. 

Também nesse sentido, Sandra Benfica, igualmente dirigente deste movimento, questiona o direito ao lucro dos proxenetas. “Nós consideramos que isto é um abuso, evocar este direito ao lucro quando estamos face a uma situação onde é reconhecida a excecionalidade da vulnerabilidade e risco das pessoas prostituídas, quando sabemos que há uma ligação fortíssima e indissociável entre tráfico e prostituição, quando sabemos que as mulheres e as crianças são a esmagadora maioria das pessoas em situação de pobreza ou em risco de pobreza, quando sabemos que a lei internacional, toda a estrutura da lei internacional, sanciona a obtenção do lucro através da exploração da prostituição por outrem”, defende.

Para Sandra Esteves, o argumento envocado pelos juízes do Tribunal de Vila Real e por alguns juízes do Tribunal Constitucional não colhe. “Diz-se que a prostituição não é crime, e que não sendo crime não faz sentido, nem é lícito, punir o lenocínio. Ou seja, punir uma prática e uma atividade que está assente noutra que não é crime. É simples rebater este argumento. Nós temos o tráfico de produtos de estupefacientes que não é crime, é uma contraordenação nalgumas situações, noutras nem isso, portanto, não é um crime. Certo é que um dos crimes mais gravemente punidos e com moldura penal maior é o tráfico de produtos estupefacientes”.

Sandra Benfica considera que a decisão do Tribunal Constitucional “está integrada num processo” que tem, na sua opinião, um “claro apoio do espaço mediático”, e que corresponde ao que entende ser o “lobby pró-proxenetismo”, recordando a recente petição na Assembleia da República para a despenalização do lenonício e regulamentação da prostituição como trabalho. “O MDM tem reafirmado desde sempre que o que está causa não é a situação dramática e violenta, também de saúde e bem-estar, das pessoas prostituídas, mas a utilização que fazem dessa situação dramática a favor de uma pretensa regulamentação da prostituição e anulação daquilo que é a criminalização do lenocínio. Nós sempre afirmámos que nunca esteve em causa a legalização ou regulamentação desta atividade em benefício das pessoas prostituídas, que o objetivo sempre foi regular, legalizar e dar mãos-livres aos proxenetas para organizarem este negócio”, sustenta.

O “aumento exponencial” da pobreza entre mulheres e crianças, aponta Sandra Benfica, conduz a “um aumento muito significativo do recurso à prostituição”. E refere a adaptação do sistema de prostituição, nos últimos anos, às transformações digitais. “Estamos a assistir a uma situação absolutamente explosiva no nosso país e, portanto, prosseguimos o combate em todas as linhas. Naturalmente, defendendo o código penal mas defendendo todos os artigos que designam as questões do direito à igualdade, à não violência e à dignidade da pessoa humana, dizendo que as mulheres também são pessoas humanas e como tal têm o direito à preservação e à proteção da sua dignidade”.

Também contactada pel’A Voz do Operário, a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres considera que esta decisão “atenta contra a Constituição da República Portuguesa, pois Portugal está constitucionalmente vinculado a promover a eliminação do sistema de prostituição”. Ana Sofia Fernandes, presidente desta organização, considera que contradiz também os compromissos internacionais de Direitos Humanos das Mulheres a que o Estado Português está vinculado. “A Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem, e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW), que diz, no seu artigo 6.º que os Estados Partes tomam todas as medidas apropriadas, incluindo disposições legislativas, para suprimir todas as formas de tráfico das mulheres e de exploração da prostituição das mulheres”, sublinha. Nesse sentido, entende que é importante destacar a recomendação geral da CEDAW, em 2020, que aborda o tráfico de mulheres e crianças no contexto da migração global. “Esta recomendação”, afirma, “aponta para o desencorajamento da procura, sublinhando um aspeto essencial: só existe tráfico para fins de exploração sexual porque existe procura, ou seja, compradores de sexo”.

Prostituição divide partidos

Após o anúncio do acórdão do Tribunal Constitucional, a Juventude Socialista (JS) celebrou a decisão afirmando que “lei que pune lenocínio não pode ficar igual”. Em declarações ao Público, o líder da JS, Miguel Costa Matos, defendeu que o atual enquadramento legal fragiliza as pessoas prostituídas. “Força-os ao isolamento, desprotegendo-os perante proxenetas e clientes violentos”, afirmou. Para o líder da JS, “não se trata de legalizar o proxenetismo”, mas de penalizar apenas casos de violência e coação.

Em junho de 2022, a JS pretendia apresentar uma proposta de regulamentação da prostituição mas, na altura, a iniciativa gerou polémica dentro das fileiras do Partido Socialista com Elza Pais, antiga deputada e presidente das Mulheres Socialistas, a afirmar que havia “grandes divergências”. Então, sustentou que contestava o conceito de “trabalho”. “A partir do momento em que nós nos opomos a que a prostituição seja entendida como um trabalho como outro qualquer, obviamente que não podemos legitimar nem concordar com a proposta da JS. Isso é contrário ao princípio que defendemos”, respondeu ao Diário de Notícias.
Já o PCP considera que a decisão do Tribunal Constitucional “foi projectada” na comunicação social “com o objectivo de credibilizar, no plano jurídico, um posicionamento político no sentido da legalização da prostituição, deliberadamente omitindo todas as decisões anteriores deste mesmo órgão em sentido contrário, confirmando a constitucionalidade do crime do lenocínio”. 

Fernanda Mateus, da Comissão Política do PCP, afirma que “a exploração das mulheres na prostituição, enquanto flagelo social, e os colossais lucros que este sórdido e desumano negócio proporciona exigem o respeito pela legislação portuguesa que não criminaliza nem persegue as mulheres, mas criminaliza o lenocínio”. Nesse sentido, considera que “não é com a subversão do que está consagrado no Código Penal em matéria de criminalização do lenocínio que se previne e combate a exploração na prostituição e protege os direitos das mulheres prostituídas, para as quais os sucessivos governos da política de direita, incluindo os governos do PS, nunca adoptaram programas de saída para que a eles possam aceder as mulheres que assim o decidam”.

Para o PCP, afirma, “a prostituição é uma grave forma de exploração, opressão e violência sobre as mulheres. Trata-se de um problema social e não de uma escolha individual, muito menos expressão da liberdade sexual da mulher prostituída”. Nesse sentido, Fernanda Mateus considera que não há dicotomia entre a prostituição forçada e prostituição por opção da mulher. “Uma e outra alimentam um negócio sórdido que aprisiona as mulheres a quem são negadas opções de vida perante contextos sociais e económicos que as atiram para a pobreza persistente ou para situações de desespero, em algum momento da sua vida, perante a total ausência de meios de sobrevivência da mulher e dos seus filhos”, sublinha. 
“Não é possível haver liberdade numa relação em que a mulher prostituída vende o seu corpo para fins sexuais a quem o compra, ‘o cliente’, nem há qualquer moralismo na consideração de que se trata da total subversão da sexualidade humana, que deve ser construída na base da liberdade e respeito mútuo”, afirma.

E contesta a acusação de se tratar de uma posição moralista. “A nossa rejeição à regulamentação e legalização da exploração na prostituição não se sustenta em juízos morais sobre a conduta das mulheres prostituídas – o Código Penal não as criminaliza e bem – mas na profunda convicção que ao Estado incumbe, no respeito pela Constituição da República e pelos direitos das mulheres, tudo fazer para a prevenção e combate deste flagelo social”.

Até ao fecho desta edição, o Bloco de Esquerda não tinha respondido às perguntas enviadas pel’A Voz do Operário.

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