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Trabalho

É um absurdo exigir 850€ de salário mínimo?

Foi criado com a revolução de Abril e tem sido objeto de disputa todos os anos entre trabalhadores e patrões. As declarações de uns e de outros nas conferências de imprensa à saída das reuniões de concertação social ilustram os interesses em disputa. Este ano, com eleições legislativas à porta, o salário mínimo nacional promete transformar-se numa batalha entre os que resistem ao seu aumento e os que exigem melhores condições de vida. O certo é que dele dependem milhares de trabalhadores que não estão dispostos a continuar a ver a curva das desigualdades a aumentar.

trabalhadores de call center

Este ano, durante as celebrações do 1.º de Maio na Alameda, em Lisboa, o secretário-geral da CGTP, Arménio Carlos, anunciou a exigência de um aumento do salário mínimo nacional para 850 euros. Ou seja, mais 250 euros. Jornais, rádios e televisões receberam imediatamente a visita de todo o tipo de empresários e economistas que, de forma praticamente unânime, consideraram inconcebível tal reivindicação. O histórico representante dos patrões e presidente da Confederação Empresarial de Portugal, António Saraiva, classificou o objetivo da CGTP à página Eco como “irrealista” e acrescentou que “um aumento de 42% do salário mínimo” era “um absurdo”. O dirigente patronal defendeu que “a política salarial das empresas deve ser consentânea com o crescimento económico, com a inflação, com a produtividade”. Uma posição também sustentada por João Vieira Lopes, presidente da Confederação e Comércio e Serviço, que afirmou ao Público que o salário mínimo “deve ser estabelecido anualmente em função de critérios económicos, como a inflação, a
evolução do PIB e a produtividade”. Mas se é verdade que os representantes dos patrões se insurgem, ano após ano, contra qualquer aumento, seja ele menor ou maior, como aconteceu no ano passado quando a CGTP exigiu 650 euros, mais 50 euros do que o proposto pelo governo, será certo que a exigência de 850 euros é um “absurdo” e é “irrealista”?

Empresas cresceram com aumento do salário mínimo

Em sede de concertação social, as associações patronais bateram-se no ano
passado contra um aumento superior a 600 euros, como reclamavam os sindicatos, porque poria em causa a sobrevivência de muitas empresas. Este é, aliás, um dos argumentos usados, todos os anos, contra a subida do salário mínimo. Mas, na verdade, ultimamente, a tendência tem sido justamente a contrária. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), a taxa de natalidade das empresas subiu ligeiramente e a taxa de mortalidade desceu. Mas há outro número importante que desmente a retórica patronal. Em 2017, os gastos com trabalhadores, segundo o Banco de Portugal (BdP), foram, em média, 14,15% do total do que gastaram as empresas e na esmagadora maioria delas não foi além dos 20%. De acordo com a mesma fonte, o peso do pessoal nas contas nas grandes empresas não foi além dos 11,66%. O aumento do salário mínimo tampouco se veio a revelar uma catástrofe para a economia do país uma vez que veio dinamizar e aumentar o consumo e a procura interna que contribuíram para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em 2017 (3%), 2018 (2,4%) e 2019 (2,2%), segundo o Eurostat.

Salário mínimo devia estar nos 1137 euros

Mas o principal argumento arremessado invariavelmente pelas associações patronais é o de que o salário mínimo deve ser estabelecido em função da inflação e da produtividade. Em 2017, teve eco na imprensa o estudo “Rendimento Adequado em Portugal – Quanto é necessário para uma pessoa viver com dignidade em Portugal?” realizado através de uma parceria entre várias universidades, entre as quais a de Lisboa e a Católica, e a Rede Europeia Anti-Pobreza. Os responsáveis pela investigação concluíram, nesse ano, que o rendimento adequado para um agregado familiar composto por dois adultos e dois menores devia ser de 2271 euros líquidos. Hoje, diz a CGTP, esse valor atualizado corresponde a 2297 euros, o que equivale a 1149 euros por adulto. Ou seja, 1430 euros brutos por mês. Ora, de acordo com os dados anuais do INE, desde 1974, sobre inflação e produtividade, o salário mínimo nacional devia atingir no próximo ano 1137 euros. São números bem acima, ainda assim, daqueles que a própria CGTP agora propõe. Os referidos 850 euros que escandalizaram as organizações patronais.

Só 34,6% da riqueza produzida vai para os trabalhadores

Contudo, se durante décadas os trabalhadores receberam abaixo destes indicadores, isso significa que o resultado da sua produtividade e da inflação dos preços se traduziu em receitas para as empresas. Por exemplo, se olharmos para a distribuição funcional da riqueza entre trabalho e capital, verifica-se que a evolução da massa salarial e o aumento do emprego travaram o agravamento da desigualdade deste indicador. Mas comparando, hoje, a parte do excedente bruto de exploração que vai para os salários com os números de 2000, verificamos que hoje é menor do que há 19 anos. Portugal continua a ser um país marcado por uma profunda desigualdade. Uma das maiores contradições é a que se dá na repartição do rendimento entre o capital e o trabalho. Analisando aquilo que é produzido e aquilo que regressa aos bolsos através do salário, a conclusão é que os que trabalham recebem apenas 34,6% da riqueza gerada e que para as empresas vai 41,8%. Esta realidade é tanto mais crítica quando as desigualdades no país significam, muitas vezes, pobreza. Mesmo quando se trabalha. Um em cada 10 portugueses empobrece a trabalhar. De acordo com dados do INE, percentualmente, houve um ligeiro decréscimo deste indicador nos últimos dois anos mas a subida substancial do salário mínimo contribuiria para uma resolução mais eficaz deste problema.

FONTE: CGTP IN a partir de dados do INE, Contas Nacionais e Banco de Portugal
FONTE: INE; valores em percentagem

Muito mês para pouco salário

A verdade é que com a subida do salário mínimo e com a não atualização geral dos vencimentos há cada vez mais trabalhadores a receber o valor salarial mais baixo permitido – quase 1/4 dos trabalhadores portugueses. Uma realidade que, no contexto nacional, é insuficiente para fazer frente às despesas de todos os dias. Também segundo o INE, o custo da habitação é o que mais pesa no orçamento familiar. Num inquérito às despesas com habitação, água, eletricidade, gás e outros combustíveis, entre 2015 e 2016, o mesmo instituto revelou que a média nacional paga por um casal era de 619 euros. Este valor não só ficava muito abaixo da média das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto como, desde então, os preços das casas dispararam para números inimagináveis há poucos anos. Por exemplo, o governo estabeleceu no Programa de Arrendamento Acessível que o preço máximo por um T2 em Lisboa será de 1150 euros. Há uma semana, a agência Lusa noticiou que Portugal registou, em 2018, um nível de preço de um cabaz comparável de produtos alimentares e bebidas não alcoólicas quase em linha com a média da União Europeia (UE), segundo o Eurostat. De acordo com dados divulgados pelo gabinete estatístico europeu, em Portugal, o preço de um cabaz de compras é de 99% da média da UE. A Dinamarca (130%) apresentou o mais alto nível de preços de produtos alimentares e bebidas não alcoólicas, seguida pelo Luxemburgo e Áustria (125%), Irlanda e Finlândia (120%) e a Suécia (117%). No outro extremo da tabela, com os mais baixos níveis de preços, estão a Roménia (66%), Polónia (69%), Bulgária (76%), Lituânia (82%), República Checa e Hungria (85%). Em relação aos produtos que compõem o cabaz alimentar, em Portugal, o pão e cereais custam 98% da média da UE, a carne 83% e os ovos, leite e queijo ultrapassam a média (109%). Ou seja, Portugal tem salários muito baixos, mais próximos dos países que têm os cabazes mais baratos, mas tem os preços dos produtos ao nível de países com salários mínimos bem mais elevados.

Maior aumento desde 1977 em Espanha

Também em Espanha, que é o maior mercado com que Portugal se relaciona, os empresários contestaram a subida do salário mínimo. Quando António Costa decidia aumentar os trabalhadores que recebem a remuneração mínima em 20 euros, o governo espanhol aumentou o salário mínimo em 161 euros. O maior aumento em Espanha desde 1977. De 735,9 euros passaram a receber 900 euros.

Salário mais elevado foi com Vasco Gonçalves

O salário mínimo foi criado um mês após a revolução de Abril, em 1974, e foi fixado em 3300 escudos. Foi um marco na luta por direitos laborais. Tinha o objetivo de “abrir caminho para a satisfação de justas e prementes aspirações das classes trabalhadoras e dinamizar a atividade económica”, lia-se no decreto- lei de maio de 1974, aprovado durante o governo liderado por Palma Carlos. Ao longo dos anos, o salário mínimo nacional foi perdendo valor real com o maior corte a ser protagonizado por Mário Soares em 1984. O auge do valor real foi atingido em 1975 durante o governo de Vasco Gonçalves que fixou o salário em 4 mil escudos.


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