Muhammad Ali // Foto: Charly W. Karl via Flickr BY CC 2.0

Braima Dabó é a prova de que nem sempre os grandes momentos do desporto se traduzem em golos, recordes batidos e taças ou medalhas. O corredor guineense de alta competição surpreendeu o planeta nos Mundiais de Atletismo de Doha, no Qatar, na eliminatória dos 5 mil metros quando estava a 250 metros do fim da prova e decidiu parar para ajudar Jonathan Busby a chegar à meta. Perante a ovação de milhares de espetadores, Braima Dabó terminou a corrida abraçado ao atleta de Aruba que mais tarde disse ter recebido a ajuda de um “anjo”.

“Quando sofri a lesão e caí, do nada apareceu uma mão a segurar-me. Era a mão de um anjo. Não tenho muitas palavras para descrever o que aconteceu. Foi uma das cenas mais marcantes da minha vida. Posso dizer que ganhei um irmão. O Dabó já faz parte da minha família. Para lá do facto de as imagens já rodarem o mundo, ele já é uma celebridade em Aruba”, de- clarou Jonathan Busby à imprensa.

O anjo do atleta caribenho nasceu na Guiné-Bissau, numa pobre aldeia da região de Tombali, onde não há sequer estradas asfaltadas, e estuda atualmente em Bragança. Respondeu depois da prova que fez apenas “o que qualquer um estaria disposto a fazer naquela posição”. O facto é que Braima Dabó é já apelidado de “herói do fairplay” e é um dos quatro nomeados para o prémio nessa categoria que vai ser atribuído este mês no Mónaco.

A atividade desportiva traduziu ao longo da história a vontade da humanidade em superar os seus próprios limites e encontrou na solidariedade uma marca característica de quem se sacrifica para ir mais além, seja individualmente ou coletivamente. Mesmo hoje, apesar da profissionalização, das elevadas quantias envolvidas, da financeirização de diferentes modalidades e do crescente peso da competitividade, o conceito de desportivismo continua a significar lealdade, companheirismo e ética. A expressão “ganhar ou perder é desporto” mostra o quão está enraizada a ideia de que há valores mais importantes do que a vitória

Olímpiada popular em Barcelona

Em agosto de 1936, realizou-se em Berlim a mais controversa das edições dos Jogos Olímpicos com Adolf Hitler a encabeçar a cerimónia de abertura. Nesse mesmo ano, Espanha, que perdeu a organização do evento para a Alemanha nazi, decidiu boicotar o evento em conjunto com a União Soviética e organizar a Olimpíada Popular, em Barcelona, com mais de 6 mil atletas provenientes de 22 países convocados pela Confederação Desportiva Internacional do Trabalho e pela Internacional Vermelha do Desporto, conhecida como Sportintern. Muitos dos participantes pertenciam a associações, clubes desportivos sindicais e partidos de esquerda apesar de haver atletas de alto nível. As delegações da Alemanha e de Itália, com regimes fascistas, eram compostas por exilados desses países e a inauguração da Olimpíada Popular estava prevista para 19 de julho.

Dois dias antes do evento desportivo, Francisco Franco liderou o levantamento fascista que deu início à guerra civil de Espanha e os jogos tiveram de ser cancelados. Alguns atletas nunca chegaram a Barcelona porque esbarraram com o encerramento da fronteira francesa mas muitos outros tiveram de abandonar a capital catalã à pressa. Contudo, pelo menos 200 participantes de diferentes nacionalidades decidiram ficar e juntar-se aos trabalhadores que pegaram em armas para combater o fascismo.

Futebol rebelde

A maioria dos jogadores de futebol tem origens populares e as ruas dos bairros mais pobres foram palco de intermináveis jogos que apenas tinham como baliza duas pedras. Não é de estranhar, pois, que alguns dos que foram elevados a estrelas do desporto mais mediático do planeta assumam posturas solidárias.

Quando o Benfica ganhou o último campeonato, Bruno Lage deixou uma mensagem importante aos adeptos. “Se vocês se unirem e tiverem a força e a exigência que têm com o futebol nos outros aspetos do nosso Portugal, da nossa economia, da nossa saúde, da nossa educação, vamos ser um país melhor”, apontou o treinador. Não têm sido poucas as posições solidárias de inúmeros treinadores e jogadores com diferentes causas.

Por exemplo, Pep Guardiola, que comanda o Manchester City, nunca escondeu o seu apoio à causa independentista da Catalunha e recentemente contestou a sentença de prisão a vários líderes separatistas catalães.

Já Marcelo Bielsa, questionado pela imprensa sobre a revolta no Chile, afirmou que a sua opinião não é indiferente, “não porque seja qualificada mas porque se multiplica”. Cuidadoso nas palavras, o treinador do Leeds United considerou “admirável o que o povo chileno está a fazer, especialmente os cidadãos comuns, que exercem a democracia e são um exemplo para todos os países que são tratados injustamente pelos seus governantes”.

Quem também nunca escondeu o seu compromisso com a luta dos trabalhadores e dos povos é Diego Armando Maradona. O deus de muitos ateus do futebol não brilhou apenas nos relvados. Apesar de muitas polémicas, o ‘pibe’ manteve-se fiel às raízes sociais onde nasceu e deu a cara pelos seus amigos Fidel Castro e Hugo Chávez. Durante o Campeonato Mundial de Futebol na Coreia do Sul e Japão, o governo nipónico queria impedir a entrada no país do antigo capitão da seleção argentina e negou-lhe o visto. “Eu não matei ninguém e respeito as leis japonesas. Não lhes atirei nenhuma bomba nuclear. É um contra-senso, se querem proteger os ja- poneses não deviam permitir a entrada da seleção dos Estados Unidos”, defendeu-se Maradona.

Quando chegou à Fiorentina, um jornalista perguntou ao brasileiro Sócrates se gostava mais de Mazzola ou Rivera. “Não os conheço. Estou aqui para ler Gramsci na língua original e estudar a história do movimento operário italiano”, respondeu o ídolo dos adeptos do Corinthians. Foi precisamente neste clube fundado por um grupo de operários de São Paulo que Sócrates ficou conhecido por liderar a “democracia corinthiana” em plena ditadura brasileira. Durante os jogos, a equipa paulista usava frases no equipamento como “diretas já” ou “eu quero votar para presidente”.

Pela igualdade, contra o racismo

A história dos Estados Unidos está marcada a ferros pela discriminação racial. Foram muitos os atletas afro-americanos que usaram o desporto como ferramenta de denúncia da realidade que vivem os negros naquele país. É possível que Mohammad Ali seja o mais conhecido. Eleito “desportista do século” pela Sports Illustrated em 1999, o pugilista norte-americano recusou-se a combater no Vietname arriscando a sua carreira. “Nenhum vietcongue me chamou de negro, por que lutaria contra eles?”. Em 1967, quando, juntamente com Martin Luther King, de quem era amigo, esteve em Louisville para apoiar a luta da população local pelo acesso à habitação afirmou: “Por que me pedem para vestir um uniforme e deslocar-me 10 mil milhas para lançar bombas e balas contra o povo do Vietname enquanto os negros de Louisville são tratados como cães, sendo-lhes negados os mais elementares direitos humanos? Não, não vou viajar 10 mil milhas para ajudar a assassinar e queimar outra nação pobre para que simplesmente continue a dominação dos senhores brancos sobre os povos de cor mais escura mundo afora. É hora de tais males chegarem ao fim”.

No ano seguinte, em 1968, os atletas negros norte-americanos Tommie Smith e John Carlos conquistaram as medalhas de ouro e bronze nos Jogos Olímpicos do México e subiram ao pódio com o australiano Peter Norman. No pódio, os velocistas afro-americanos levantaram o punho fechado com uma luva negra enquanto soava o hino dos Estados Unidos, imitando o gesto de saudação dos Panteras Negras. “Se ganho, sou americano, não afro-americano. Mas se faço algo de mal, então diz-se que sou negro. Somos negros e estamos orgulhosos de sê-lo. A América negra vai entender o que fizemos esta noite”, afirmou Tommie Smith.

Avery Brundage, presidente do Comité Olímpico Internacional, considerou o gesto inadequado e ordenou a suspensão dos dois atletas da equipa norte-americana e pediu que fossem expulsos da vila olímpica, o que foi recusado pelo Comité Olímpico mexicano que considerou os velocistas convidados de honra e anunciou que seriam tratados como tal. Brundage, que fora presidente do Comité Olímpico norte-americano durante os Jogos Olímpicos de Berlim em 1936, não fez qualquer objeção à saudação nazi realizada por vários atletas.

Mais recentemente, Serena Williams contestou a discriminação salarial so- bre as trabalhadoras negras. “O dia 31 de julho é o Dia da Igualdade de Salário das Mulheres Negras, que representa o número de dias em 2017 que uma mulher negra deve trabalhar para ganhar o mesmo que um homem branco ganhou em 2016 – são quase mais 8 meses! As mulheres negras são a pedra angular das nossas comunidades, são fenomenais e merecem salário igual”, escreveu a tenista.

Batista Pereira, o nadador do povo

Personagem de Esteiros, livro de Soeiro Pereira Gomes, e considerado por muitos o melhor nadador português de sempre, Batista Pereira cresceu junto ao Tejo em Alhandra. Sem instrutor nem subsídios estatais, aos 14 anos era já o melhor português nos 200, 400 e 1500 metros. Depois, foi campeão mundial da travessia do Estreito de Gibraltar, em 1953, e bateu o recorde mundial da travessia do Canal da Mancha.

Era um herói que escondia a sua condição de militante comunista desde 1946, luta que nunca abandonou antes e depois da revolução de Abril. Cresceu numa zona operária: “Soeiro Pereira Gomes foi o homem mais extraordinário que eu conheci, um homem bom, um homem inteligentíssimo, um grande amigo do povo. Foi um dos que me ensinaram as primeiras letras, e o primeiro fato e os primeiros sapatos que tive foi ele quem mos deu; lembro-me como se fosse hoje: era um fato aos quadradinhos pretos e brancos e uns sapatos amarelos de biqueira larga”, recordou Batista Pereira sobre o histórico escritor comunista com quem ganhou consciência de classe.

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