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Verdade ou consequência. Nem sempre os fact checks acertam

Nesta campanha eleitoral os fact check, verificadores de factos, estão a ter um papel mais destacado que em anteriores eleições, chegando ao ponto de haver candidatos a apresentar listas de factos para serem verificados. E de o pedido ter sido atendido.

É um facto que os níveis de desinformação andam pelas nuvens e que em terra de cegos quem tem olho é rei. Para além da proliferação de questionários, algumas vezes com perguntas enviesadas, com o intuito de indicar o sentido de voto em função das escolhas, esta campanha tem sido pródiga em verificadores de factos. A promoção de várias afirmações falsas e a inconsistência programática da extrema-direita tem ajudado com o Chega a soar o alarme vermelho de forma repetida nas páginas de fact checks. André Ventura mente muitas vezes com convicção. Exemplos práticos: Chega nunca defendeu o fim do serviço público de saúde e educação? Falso. O Chega foi recebido a tiros em Famalicão? Falso. André Ventura não apoiará Luís Montenegro para líder do PSD? Falso.

Não é mentira que os verificadores de factos foram úteis para desmascarar factos não verdadeiros. E não apenas do Chega. Alguns desses factos foram construídos com objetivos concretos, como facilitar o apoio a medidas que só vão beneficiar os mais ricos. Por exemplo, a ideia de que Portugal tem a maior carga fiscal da União Europeia ou da OCDE, ou que registou o maior crescimento dessa carga fiscal, que foram demonstradas serem falsas sem apelo nem agravo quer no Polígrafo quer no «Fact Check».

Como foram importantes para desmontar a insinuação do antigo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho que associou imigração e insegurança. O Polígrafo demonstrou a completa ausência de relação entre criminalidade e imigração. Mas os verificadores de factos não são neutros, e muitas vezes também escorregam para a manipulação. Nesse aspecto, faltou quem nesta campanha verificasse os verificadores de factos. Três exemplos.

O caso dos 23 mil milhões para a Banca

O Observador considerou errada a seguinte afirmação de Paulo Raimundo: «Pusemos estes valores na banca privada, mais do que a bazuca. Todo o dinheiro que saiu foi mais que a bazuca, o que pusemos na banca e na banca privada.» A afirmação é cristalinamente verdadeira, e as provas encontram-se, quase todas, na própria argumentação do Fact-Check do Observador, que recorre à apreciação do Tribunal de Contas à Conta Geral do Estado.

A primeira manipulação que o Observador faz é colocar em Paulo Raimundo palavras que não disse. Escreve o Observador: «De facto, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), conhecido como bazuca, Portugal vai ter direito a um total de 22.200 milhões, mais do que os 16.600 milhões inicialmente previstos. Ou seja, o mesmo que o saldo do apoio à banca registado até 2021 (em 2022, o saldo baixou para um prejuízo para o Estado de 21.883 milhões). Nisso Paulo Raimundo está certo. Só que o dinheiro dos apoios não foram todos para a banca privada.» Agora revisitem a primeira citação, onde Paulo Raimundo diz «o que pusemos na banca e na banca privada». Ou seja, Paulo Raimundo não referiu apenas a banca privada.

A segunda manipulação – seguindo aliás na esteira das manipulações de Rui Rocha durante o debate – foi a de que o BPN era um banco público. Ora o BPN foi à falência enquanto Banco privado, e foi nacionalizado em 2008 para colocar o Estado e a CGD a pagar a falência do Banco, tendo o Banco sido reprivatizado em 2011 assim que foi limpo do passivo. Ele passou pelo Estado para essa limpeza, foi para isso que serviu a dita nacionalização do BPN. Foi uma espécie de duche, que deixou no Estado toda a porcaria acumulada pela gestão privada. Aliás, uma simples consulta à Wikipédia é refrescante da memória: o BPN era aquele Banco privado gerido por um amigo de Cavaco Silva, Oliveira e Costa (Secretário de Estado num governo PSD), e onde Dias Loureiro (Ministro do PSD) e Duarte Lima (líder parlamentar do PSD) praticaram negócios ruinosos para o Banco. Os seis mil milhões que o Estado pagou para «salvar» o BPN não foram dados à Banca Pública, fazem parte de um resgate à Banca privada.

O que é objectivo e factual é que nos Bancos privados que faliram (BPN, BES, BANIF, BPP) foi o Estado que absorveu as perdas. Os lucros – muitas vezes avultados – distribuídos nos anos anteriores à falência ficaram no bolso dos accionistas. Tal como os lucros dos bancos que não faliram.

“O que é objectivo e factual é que nos Bancos privados que faliram (BPN, BES, BANIF, BPP) foi o Estado que absorveu as perdas. Os lucros […] ficaram no bolso dos accionistas.”

Assim, olhando para o próprio quadro publicado pelo Observador, mas colocando o BPN como o Banco privado que foi, o total de apoios à Banca foi de 21 883 milhões, dos quais 16 475 milhões foram à Banca privada. Com uma nota importante que o próprio Observador reconhece: a CGD está a devolver os apoios recebidos (em 2023 entregou 713 milhões ao Estado português) o resto dos «apoios» estão quase todos perdidos.

Quem quer acabar com a progressividade do IRS?

Um segundo exemplo de manipulação podemos encontrar na forma como o fact-checker do Observador considerou completamente errada a afirmação de Inês Corte-Real de que a IL defendia o fim da progressividade dos impostos na sua proposta de revisão constitucional.

O Observador vai visitar e citar as propostas apresentadas pela IL em sede de revisão constitucional para concluir que é totalmente falsa a crítica pois a IL mantinha a progressividade na Constituição. De facto, com a alteração proposta pela IL ao ponto 1 do artigo 104º, este passaria a ter como redação «O imposto sobre o rendimento pessoal é único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar», ou seja, retirando do escrito original a expressão «visa a diminuição das desigualdades», tal como aponta o Observador.

Mas manter a palavra «progressivo» mantém a progressividade? Ou seja, é completamente inócua a proposta da IL de «apenas» retirar a frase «visa a diminuição das desigualdades»? A IL faz uma proposta de revisão constitucional apenas para deixar o texto mais simples? Claro que não. O que a IL quer – e assume-o no seu Programa Eleitoral – é implementar em Portugal uma taxa única de IRS (15% para os rendimentos que excedam o Salário Mínimo Nacional). Mas a própria IL reconhece que essa taxa hoje não cumpre a Constituição, pelo que apresenta, por agora, uma proposta de duas taxas para garantir essa progressividade (15% e 28%). Ou seja, a própria IL reconhece que é necessário alterar a Constituição para aplicar a sua proposta. E a sua proposta de revisão constitucional visava permitir essa alteração.

É que a progressividade, tal como estabelece hoje a Constituição, não se reduz ao «quem ganha mais paga mais» que também resulta de uma taxa única de IRS. A progressividade «visa a diminuição das desigualdades», ou seja, quem ganha mais paga uma percentagem maior do rendimento e não apenas mais. E foi essa a alteração cirúrgica que a IL propôs.

O Observador conhece o Programa Eleitoral da IL e até o cita. Se fizesse uma simples simulação veria que a taxa de 15% que a IL defende pouparia, num rendimento de 250 000 € cerca de 75 000 € ao feliz contemplado, ao mesmo tempo que deixaria os quase 3 milhões de agregados trabalhadores que recebem menos de 1000 euros mensais a pagar o mesmo IRS.

Resumindo, se literalmente a IL continua a falar em «imposto progressivo» as suas propostas eliminam a progressividade no sentido que a Constituição estabelece e alteram esse sentido. Que Rui Rocha não o queira assumir explicitamente tem uma justificação muito simples: as propostas da IL só servem o interesse dos muito ricos (há «só» 50.000 agregados a ter mais de 100.000 euros de rendimento anual), quando os que nada ganham (e muito perdem) com a proposta da IL de reduzir o IRS são 3 milhões de agregados.

“[…] as propostas da IL só servem o interesse dos muito ricos (há «só» 50.000 agregados a ter mais de 100.000 euros de rendimento anual)”

Também o Polígrafo analisou exactamente a mesma questão, considerando igualmente Falsa a afirmação do PAN. O Polígrafo no entanto encontra uma explicação para a confusão de Inês Corte-Real – foi o CH quem propôs a eliminação da progressividade da Constituição.

Mas também o Polígrafo fugiu ao essencial: ambos os Partidos – CH e IL – defendem a mesma medida para o IRS – 15% de taxa única – e essa medida acaba com a progressividade e só beneficia os mais ricos. Agarram-se ao ponto de vista formal – se a IL propôs, ou não, retirar a palavra progressivo da Constituição, mas descuram o facto real e concreto que esta quer eliminar a progressividade fiscal. Um pouco como aqueles que numa revisão constitucional criaram as condições para o acesso à saúde passar a ser pago mas mantiveram a palavra gratuito no texto Constitucional: o acesso à saúde deixou de ser «gratuito» para passar a ser «progressivamente gratuito», ou seja, pago.

Esta avaliação do Observador e do Polígrafo é pois manipulada. Quanto muito poderia aceitar-se uma classificação de incorrecta, ou incompleta, para a afirmação de Inês Corte-Real. Agora, de errada? A IL defende o fim da progressividade no IRS e não devia ter vergonha de assumir o que isso implica: baixar 30% a taxa sobre os mais ricos, mantendo a taxa efectiva sobre os 3 milhões de agregados com menos de 1000 euros de rendimento mensal per capita. E a sua proposta de revisão constitucional destinava-se a permitir isso mesmo.

Metade do Orçamento do SNS é transferido para o setor privado?

Este facto, exposto por Paulo Raimundo, é absolutamente verdadeiro, como reconhece a investigação do Fact-Check do Observador, pois os números são factuais e encontram-se plasmados no Orçamento de Estado para 2024: 8 mil milhões (51%) das despesas do SNS são com a aquisição de serviços externos. No entanto, apesar da sua própria investigação reconhecer o facto como verdadeiro, o Observador classifica a afirmação como «Esticada», ou seja, exagerada, parcialmente falsa.

Porquê? Bem, porque como escreve o próprio Observador, a informação é verdadeira mas «naturalmente» uma parte dessa despesa, aquela que é feita com medicamentos, é feita fora do SNS. E como o Observador considera ser «natural» que os 1,8 mil milhões em medicamentos sejam gastos «fora do SNS», a reconhecidamente verdadeira afirmação de Paulo Raimundo passa a ter a classificação de «Esticada».

“8 mil milhões (51%) das despesas do SNS são com a aquisição de serviços externos.”

Ainda assim teve sorte o Secretário-Geral do PCP, pois se o Observador também considerasse «natural» que os restantes 6,2 mil milhões fossem pagos ao privado como são, a sua afirmação passaria de «Esticado» a «Mentira» apesar de ser completamente verdadeira.

Esta manipulação desvaloriza um facto expresso por Paulo Raimundo, e não deveria caber num mecanismo que se destina a confirmar a veracidade dos factos. E não se os factos confirmam as opiniões de quem escreve.

A manipulação dá-se através do uso da palavra «naturalmente». E apetece questionar: Porquê naturalmente? Um naturalmente aplica-se em frases como «estão menos de zero graus e naturalmente a água congelou». Porquê o «naturalmente» no contexto de uma opção política? Porque é que «naturalmente» os medicamentos são comprados fora do SNS?

É sabido que o PCP defende que uma parte importante dos medicamentos seja já hoje produzida pelo Estado, e a sua produção desmercantilizada no quadro do SNS. E o PCP ainda defende que na sociedade do futuro que quer construir, todos os medicamentos sejam produzidos de forma socializada e desmercantilizada. E hoje existem sociedades onde é assim a política do medicamento. Não se está de acordo? É um direito (e até um dever se se está ao serviço do capital que quer lucrar com o negócio da doença). Não se pode é confundir factos com opiniões. Principalmente se se é um «fact-checker».

E o facto aqui é que metade das despesas do SNS com a Saúde vai para o sector privado.

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