Trabalha há seis anos na Quinta do Loureiro. Com presença assídua no bairro onde foi realojada parte da população do Casal Ventoso, diz que o tráfico e o consumo estão a aumentar naquela zona de Lisboa. Esta psicóloga que não quis ser identificada explicou à Voz do Operário que este crescimento acontece, sobretudo, desde a pandemia. “Começamos a assistir a fenómenos que viamos nos anos 80 e 90 com gente a permanecer na zona em tendas, algo que é particularmente visível debaixo da passagem aérea da Avenida de Ceuta”, descreve. Segundo explica, a maioria é portuguesa mas também há imigrantes. Para além da degradação do espaço público, num bairro que viu a sua escola e piscina encerradas, o problema alarga-se numa realidade à vista de todos. “Claro que isto também tem impacto sobre a população que trabalha”, defende.
Consumo assistido na Quinta do Loureiro
Foi precisamente na Quinta do Loureiro que, há cerca de dois anos, abriu um centro de consumo assistido. É onde trabalha Patrícia Belo. Esta enfermeira dedica-se àquilo a que chama “redução de danos”. Ou seja, a batalha que tem em mãos, em conjunto com outros funcionários, é conseguir que os utentes deixem de consumir. “Mas quando isso não acontece, quando as pessoas vão consumir na mesma, então damos-lhes condições que permitam minimizar os riscos do consumo. Quer isto dizer, ajudar as pessoas a consumir de forma mais asseptica, mais limpa, mais controlada”, explica. Às vezes, Patrícia Belo precisa de negociar os consumos quando vê que alguém consumiu demais mas, em último caso, entre as suas funções está reverter casos de overdose.
Entre os utentes, maioritariamente portugueses, há também imigrantes e até turistas. “Temos alguma imigração mas temos pessoas que estão de passagem, eventualmente algumas pessoas que estão a fazer turismo porque sabem que é um sítio seguro e consomem ali”, descreve. Patrícia Belo diz que são sobretudo homens e numa faixa etária que, segundo esta enfermeira, estão entre os 35 e os 55 anos. O consumo de cocaína e heroína, e também de crack, tem vindo a aumentar por causa da crise. “Há uma procura das drogas mais baratas. Temos quem consuma só cocaína e as pessoas que consomem ambas para contrabalançar o efeito. No fundo, só conseguem encontrar o conforto consumindo as duas”.
Para esta enfermeira, a existência deste tipo de salas faz todo o sentido porque “tem impacto na vida das pessoas”. No caso deste espaço na Quinta do Loureiro, o centro é gerido pela associação Ares do Pinhal, uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) criada em 1986, com financiamento da câmara de Lisboa e do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD). “Este é um lugar seguro, onde podem fazer os seus consumos”, explica e dá o exemplo da cocaína, que pode provocar alucinações. “Isto fragiliza a pessoa e havendo consumo na rua já houve casos em que foram roubados ou vítimas de violência. Para além disso, é um lugar onde podem aprender sempre no sentido de o fazerem de forma segura e não no sentido de consumirem mais. Nós não queremos que as pessoas consumam. Isto não é um espaço que só tenha sala de consumo. Temos um espaço para alimentação, um café onde distribuimos alimentos doados, temos um sítio onde podem tomar banho, onde podem aceder a um computador e aceder a livros. Portanto, isto é um sítio onde as pessoas passam horas”.
Quando mostram vontade de deixar de consumir ou quando estão em situação de sem abrigo, a equipa deste centro, que tem uma sala de fumo e outra injetável, encaminha os utentes para outras estruturas que os possam apoiar nesse sentido. “Tudo isto faz sentido a nível de redução dos riscos, a nível das questões psicológicas e emocionais associadas. Nós estamos ali também para falar com os utentes. Só o facto de não partilharem seringas e de não partilharem bocais quando vão fumar fez com que a incidência de doenças como o HIV, a hepatite C e a hepatite B, por exemplo, tivesse descido muito nos últimos anos”. Patrícia Belo refere-se ao programa de troca de seringas que contribuiu para a redução de infeções associadas ao consumo de drogas. Ainda assim, a enfermeira considera que devia haver mais recursos e, sobretudo, mais salas espalhadas pelo país. Com a turbulência política em todo o continente, confessa que tem receio que futuros governos possam desistir, em Portugal, de apostar neste programa que foi pioneiro na Europa.
Relatório europeu alerta para o aumento do consumo de opiáceos
A canábis continua a ser a droga ilícita mais consumida na Europa e a cocaína, por sua vez, o estimulante a que os consumidores mais recorrem. Mas a subida do consumo de opiáceos, como a heroína, está a preocupar as autoridades. O uso deste tipo de droga estava a descer desde o fim do século passado e volta às ruas com mais força do que nos últimos anos. Esta e outras conclusões aparecem no “Relatório Europeu sobre Drogas 2023: Tendências e Evoluções”, do Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência (EMCDDA, na sigla em Inglês) lançado esta sexta-feira a meio de junho, em Bruxelas, que destaca uma “maior diversidade na oferta e no consumo de drogas”.
O mesmo relatório revela que em sete países europeus a heroína foi responsável pelas mortes de um quarto a um terço do total de overdoses. Em Portugal, esse valor chega aos 37%.
Em declarações à Voz do Operário, João Goulão, diretor-geral do SICAD, explica que Portugal tem de enfrentar rapidamente este fenómeno para evitar um regresso ao passado. O também antigo presidente do Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência diz que há “alguma alteração” no tipo de substâncias mais consumidas e nos objetivos com que são consumidas. “Há substâncias que estão mais associadas ao prazer ou ao lazer, em ambientes de diversão, e outras que têm a ver com a tentativa de alívio do stress, da depressão em alguns casos. Ou até no âmbito profissional”, descreve. Para João Goulão o consumo e o tipo de drogas está associado aos “ciclos que a sociedade vai vivendo”. E aponta “a sucessão de períodos difíceis” como uma causa. “Durante o período da intervenção da troika, da dívida soberana, houve uma degradação das condições de um número significativo dos nossos concidadãos, depois a seguir vem a pandemia e agora vêm estas dificuldades relacionadas, sobretudo, com a inflação e com o aumento dos encargos com empréstimos e isto leva as pessoas a procurarem uma automedicação para aliviar o sofrimento a que estão sujeitas”, defende.
Nesse sentido, recorda que a resposta do Estado alcançou “progressos muito significativos” aquando da epidemia relacionada com uso da heroina nos anos 80 e 90. “Aí houve um investimento sério e continuado por parte do Estado. Dá a ideia de que a partir de determinada altura os responsáveis políticos ficaram convencidos de que o fenómeno estava contido, estava controlado, e aos poucos foram deixando de prestar grande atenção a esta área. E, no fundo, os serviços acabaram por ter de usar a sua capacidade de lidar com o fenómeno com todas as suas variáveis ao longo do tempo. Por um lado, nós tínhamos um serviço com uma capacidade de pensar as políticas e de as executar no terreno e que foi extinto em 2012, por outro lado, temos vindo assistir a uma saída progressiva de profissionais dedicados a estas áreas seja por reforma ou por outros motivos e não tem havido a capacidade de os substituir ou de atrair novos”, afirma. Por isso, defende que estamos a viver um período em que há “alguma dificuldade” em lidar com este “recrudescimento na sua vertente mais ligada a fenómenos de marginalidade e exclusão e pobreza”. Para João Goulão, o momento para evitar um regresso aos anos 80 é agora. “Se nao atuarmos, se não reforçarmos os serviços, sim, corremos esse risco”, confirma.
Para evitar esse cenário, o diretor-geral do SICAD explica que há uma equipa a trabalhar na reconstituição de um serviço público “com a capacidade de executar as políticas no terreno” e assegura que este foi um compromisso assumido pelo atual governo e pelo ministério da Saúde. Até ao final de 2023, esse serviço deve estar “reconstituído” e será “indispensável pensar nos recursos humanos necessários dedicados a esta matéria”.
Questionado sobre que impacto pode ter o retrato romantizado do consumo e do tráfico na televisão e no cinema, a propósito da série Rabo de Peixe, João Goulão explica que é “um risco atribuir algum glamour num meio que é tão caraterizado pela pobreza e esquecimento”.