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Constituição. Cada vez mais longe de 1976

O Chega abriu a porta e o PS, acompanhado pelo PSD, decidiu aproveitar a boleia. Está aberto um novo processo de revisão constitucional, com propostas que refletem a diversidade ideológica dos diferentes partidos representados na Assembleia da República. Se for aprovada, será a 8.ª alteração à Constituição da República Portuguesa.

O processo arrancou no princípio de janeiro, com a tomada de posse da comissão parlamentar que vai encabeçar os trabalhos de discussão e votação das alterações propostas, com um prazo inicial de funcionamento de 90 dias. Desde que foi aprovada, em 1976, este é o 8.º processo de revisão da Lei Fundamental. As alterações à Constituição da República Portuguesa só podem ser aprovadas por uma maioria de dois terços dos deputados, o que, no atual contexto parlamentar, implica os votos favoráveis do PS e PSD. A última tentativa foi há mais de dez anos, em 2010, durante o governo liderado por José Sócrates, pela mão do então líder do PSD, Pedro Passos Coelho, e falhou devido à dissolução da Assembleia da República, em março de 2011. 

O atual processo tem como antecedente a comissão constituída no ano passado pelo parlamento para debater o projeto de revisão constitucional do Chega com 17 propostas de alteração à Constituição, rejeitadas pelas restantes bancadas num processo rápido. Em outubro, a extrema-direita voltou à carga desencadeando uma nova revisão. Apesar das críticas ao momento escolhido pelo partido liderado por André Ventura, a verdade é que o PS e o PSD decidiram avançar com propostas, dando luz verde a um novo processo.

Cada vez mais longe de 1976

A cada revisão constitucional, 1976 fica mais longe. Em 2016, 40 anos depois, a exposição multimédia sobre a Constituição destinada a uma audiência mais jovem, organizada pelo arquiteto Nuno Gusmão, mostrava que a Constituição já só mantinha 10% dos artigos do texto original. Neste novo processo, o PSD encabeça o número de propostas com a intenção de alterar 71 artigos da Constituição. O PCP apresentou 68 propostas e o Chega avançou com 62, à frente do PS e do Livre com apenas 20. 
Segundo a Lusa, o PS afirma não querer mexer na organização económica, no sistema financeiro e fiscal, nem na organização do poder político ou dos tribunais, várias áreas em que os sociais-democratas pretendem numerosas mudanças. Já o Presidente da República tinha afirmado que era essencial permitir o acesso aos metadados dos cidadãos para efeitos de investigação policial, abrindo a porta à recolha de dados de tráfego e localização das comunicações, seja em chamadas telefónicas ou na navegação na internet, no caso de haver suspeitas de crimes graves e mediante autorização judicial. Marcelo Rebelo de Sousa pediu ainda alterações que permitam decretar com segurança jurídica confinamentos em caso de novas pandemias, mesmo sem estado de emergência. O PS e o PSD farão a vontade a Belém, limitando a privacidade e a liberdade dos cidadãos.

O partido liderado por Luís Montenegro regressa com a bandeira do limite ao défice na Constituição, impondo uma necessidade de “a lei de enquadramento orçamental estabelecer um limite plurianual ao endividamento público inscrito na lei do Orçamento, e um regime de programação plurianual da despesa pública”.

Por sua vez, a IL e o Chega querem alterar o preâmbulo da Constituição para retirar a referência à abertura de um caminho para “uma sociedade socialista” como preconiza este exórdio constitucional. O partido de André Ventura, que nunca escondeu simpatias com o regime derrubado com o 25 de Abril, pretende ainda eliminar “referências ao período fascista”.

O Chega volta a insistir na pena perpétua e na castração química, abrindo exceções ao impedimento de aplicação de penas com caráter perpétuo ou de duração indefinida quando “esteja em causa a prática de crimes contra a vida ou contra a integridade física, em que se verifique especial perversidade ou gravidade” e o recurso a “tratamentos químicos que se considerem necessários para a prevenção de crimes de natureza sexual, cujo objetivo seja a redução ou inibição de libido”.

No campo da esquerda, o PCP e o BE pretendem consagrar no texto constitucional um Serviço Nacional de Saúde (SNS) gratuito e não “tendencialmente gratuito” como está na formulação atual, que PS, PSD e Chega não pretendem alterar. De acordo com a Lusa, a IL defende um “sistema de saúde universal e geral, tendencialmente gratuito”, protagonizado pelo SNS, mas também por serviços privados e sociais. PSD e Chega também defendem a introdução de normas que prevejam a complementaridade entre entidades públicas, privadas e sociais.

No âmbito da educação, PCP e BE defendem a “gratuitidade de todos os graus de ensino”, enquanto que o PSD e Chega apenas pretendem alargar a gratuidade ao ensino secundário, com o PS a admitir estender também ao ensino pré-escolar. Uma vez mais, o PS parece resguardar-se no estabelecimento progressivo da gratuitidade para evitar defender o caráter gratuito do ensino superior.
PCP, BE e Livre querem ainda aumentar os direitos de voto dos imigrantes, enquanto PSD e Chega propõem a redução do número de deputados. O partido de Montenegro propõe que o Presidente da República tenha um mandato único de sete anos, poderes reforçados de nomeações e o Livre pretende acabar com o limite mínimo de 35 anos para uma candidatura presidencial.

Comunistas e bloquistas defendem a estabilidade dos vínculos laborais, enquanto o Chega sugere o trabalho como um dever, “exceto para aqueles que sofram diminuição de capacidade por razões de idade, doença ou invalidez”.

As sete revisões constitucionais

1982

A revisão constitucional de 1982 acabou com o Conselho da Revolução, criando o Tribunal Constitucional e o Conselho de Estado, e abriu caminho a um maior peso da iniciativa privada na economia. O ministro da Justiça deixa de nomear os juízes que passam a sê-lo pelos conselhos superiores de magistratura. O Presidente da República passou a poder demitir o governo “apenas quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado”.

1989

Sete anos depois, PS e PSD apostam definitivamente na rutura com o modelo económico consagrado pela texto fundacional da Constituição, abrindo portas à liberalização do sistema económico e adaptação à economia de mercado. A economia planificada pelo Estado perde peso e é eliminado o princípio da irreversibilidade das nacionalizações. O regresso das empresas estatais às mãos dos grupos económicos e financeiros passa a ser uma possibilidade. Nesta revisão, também perde força a reforma agrária.

1992

Com esta revisão, os dois partidos do arco do poder adaptaram a Constituição ao Tratado de Maastricht e ao Direito Comunitário. Já a antecipar a adesão à moeda única, o Banco de Portugal perde “o exclusivo da emissão de moeda”.

1997

Neste ano, a revisão introduziu alterações para adaptar a Constituição ao Tratado de Amesterdão e introduziu-se a possibilidade de os deputados da Assembleia da República poderem variar entre 180 e 230. Simultaneamente abriu-se a porta aos círculos uninominais, deu-se luz verde às candidaturas independentes às autarquias, foi reconhecido o direito de iniciativa legislativa aos cidadãos, passou a estar em vigor a imposição constitucional de que a regionalização seja submetida a referendo e os emigrantes ganharam direito de voto na eleição do Presidente da República.

2001

A Constituição foi, de novo, revista, a fim de permitir a ratificação, por Portugal, da Convenção que cria o Tribunal Penal Internacional, alterando as regras de extradição.

2004

A sexta revisão constitucional aprofundou a autonomia político-administrativa das regiões autónomas dos Açores e da Madeira, aumentando os poderes das respetivas Assembleias Legislativas e eliminando o cargo de “Ministro da República”, criando o de “Representante da República”. Foram também alteradas e clarificadas normas referentes às relações internacionais e ao direito internacional como, por exemplo, a relativa à vigência na ordem jurídica interna dos tratados e normas da União Europeia. Foi ainda aprofundado o princípio da limitação dos mandatos, designadamente dos titulares de cargos políticos executivos, bem como reforçado o princípio da não discriminação, nomeadamente em função da orientação sexual.

2005

Neste ano, a revisão constitucional foi aprovada para acrescentar um novo artigo para a realização de um referendo sobre a aprovação de um futuro tratado que visasse o aprofundamento da integração europeia.

Constituição, filha da revolução

Apesar das sucessivas revisões constitucionais, a Constituição da República Portuguesa, permanece como uma das principais conquistas do processo revolucionário e um importante instrumento de defesa de direitos, liberdades e garantias. Para além da igualdade entre os cidadãos, a Lei Fundamental preconiza o direito à vida e à integridade moral e física, a proibição absoluta da tortura, maus tratos e penas cruéis, degradantes ou desumanas, as garantias do processo penal e o acesso à justiça, a liberdade de expressão e de informação, a proibição da censura e a liberdade de imprensa, o direito de reunião, de manifestação e de associação, e um vasto leque de direitos sociais, económicos e culturais, como o direito ao emprego e a uma organização do tempo de trabalho compatível com a vida pessoal e familiar, à segurança social, à saúde, à educação, à cultura, à habitação e ao ambiente, que ao Estado compete efectivar a fim de promover o bem estar e a qualidade de vida de todos os cidadãos.

A Constituição da República Portuguesa entrou em vigor a 25 de Abril de 1976, depois de aprovada por todos os partidos com assento na Assembleia Constituinte, exceto o CDS. Apesar da alteração da correlação de forças no processo revolucionário nos últimos meses de 1975, o conteúdo do texto constitucional representou uma vitória das forças democráticas e progressistas, traduzindo nos trabalhos dos deputados constituintes o resultado da luta do povo português. Foi o caso da reforma agrária, que aconteceu já depois das eleições para a Constituinte e acabou por fazer parte da Lei Fundamental num processo dialético entre os que elaboraram o texto e a realidade exterior. Não foi a Assembleia Constituinte que decretou as transformações revolucionárias mas teve o mérito de as reconhecer e consagrar. As sete alterações à Constituição refletem a disputa com essas conquistas num processo que tem oposto as forças de esquerda e o PS e PSD, que encabeçaram todas as revisões até ao momento.

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