O sol aperta e a água cristalina, praticamente sem ondas, faz lembrar que estamos na primavera. Dentro de água, uma mulher dá umas braçadas e há um cão que corre à beira mar. Podia ser a ilustração de um folheto turístico se não estivéssemos em Mariupol e se ali ao lado, a poucas centenas de metros, o Azovstal não estivesse a ser alvo da artilharia pesada russa. Indiferente às explosões e aos sinais que alertam para a existência de minas no areal, uma outra mulher, mais velha, contempla o mar sentada num banco. “Se tiver de morrer, morro”, desabafa à saída da praia.
A auto-estrada que liga Donetsk a Mariupol era o caminho que muitas famílias faziam ao fim-de-semana para tomarem banhos de sol junto ao mar. Quando a guerra civil rebentou, em 2014, este trajecto de 115 quilómetros foi abruptamente interrompido e desde a intervenção russa, no fim de fevereiro, as forças ucranianas dinamitaram parte do caminho para travar o avanço do inimigo. Agora, a viagem demora cerca do dobro e inclui um emaranhado de desvios.
Sete palmos de terra
“Meu sol, olha para mim, a minha mão transformou-se num punho e se há pólvora dá-me fogo”, canta Viktor Tsoi no auto-rádio. Ao volante, segue Sacha que se desdobra em perguntas curiosas sobre Portugal até confessar que tem um irmão em Lisboa. “Ele defende os ucranianos. Deixou-se levar pela propaganda da NATO”, comenta. Na verdade, não é assim tão incomum. Apesar de esta região ser maioritariamente russófona e votar em partidos pró-russos, são vários os casos de famílias desavindas por causa da guerra que dura há cerca de oito anos.
Perto de Mariupol, a cerca de 15 quilómetros, está Mangush, uma localidade que abriu telejornais em todo o mundo. De acordo com as autoridades ucranianas, com a ajuda de empresas norte-americanas de geolocalização, poderia haver aqui valas comuns com até 9 mil corpos escondidos. É um soldado num posto de controlo que nos dá indicações mesmo depois de saber que queremos investigar esta grave acusação. Sorri e manda-nos avançar. É um sinal de que, muito provavelmente, não há ali nada de muito secreto. Depois de algumas voltas, encontramos o ponto de geolocalização no cemitério de Mangush. Desconfiados com a ideia de um exército depositar milhares de corpos à vista de todos num cemitério, acabamos por descobrir que são cerca de 230 campas individuais devidamente numeradas, muitas delas com nome, data de nascimento e morte. Há, ainda, cerca de uma centena de sepulturas abertas à espera da chegada de novos cadáveres. O cenário que encontramos está muito distante no número e no tipo de campas daquele que prometiam as autoridades ucranianas. Não se identificam quaisquer valas comuns.
No cemitério, vamos à procura de testemunhas que nos possam explicar o sucedido. Três coveiros que abrem uma sepultura mais abaixo dizem que não estão autorizados a falar mas que sabem que aqueles corpos vêm de Mariupol e que muitos são civis e soldados ucranianos. À conversa com várias pessoas que estão a limpar e a cuidar as campas dos seus familiares, percebemos que os enterros duram há cerca de um mês.
Irina visita a campa do pai precisamente seis meses depois da sua morte. Alexey foi um importante arquitecto de Mangush. Não sabe a quem pertencem estas novas campas no cemitério local e mostra-se indignada com as autoridades ucranianas, acusando-as de atacar o próprio povo.
“Historicamente, sempre viveram diferentes nacionalidades no Donbass. A principal língua de comunicação é o russo. Para todos, esse idioma é nativo. Quando as autoridades ucranianas fizeram um genocídio aqui, por alguma razão o mundo não se importou”, desabafa. Para Irina, as regiões de Donetsk e Luhansk “foram constantemente alvo de bombardeamentos” e “ninguém” se interessou por isso”.
“As pessoas gritavam por socorro e a imprensa internacional ficou em silêncio. E quando não havia ninguém para pedir ajuda, pedimos ajuda à Rússia. A Rússia veio para nos proteger e o mundo de repente ficou indignado, começou a gritar que os russos são agressores. Ou seja, é um pouco hipócrita”, defende Irina.
Ali bem perto, uma idosa limpa as ervas daninhas com um ancinho. “O carro trazia corpos de Mariupol. Duas escavadoras abriam buracos e uma outra enchia de terra. O carro ia e voltava. Dizem que os corpos foram primeiro levados para Mangush para a morgue”, afirma Ana.
Decidimos, então, procurar a morgue do hospital de Mangush para entender melhor esta história mas nenhum dos trabalhadores aceita falar sem a presença de um responsável. Esperamos algum tempo para esclarecer sobre quem são estas pessoas e que tipo de enterros têm sido feitos. Chegam vários militares que se identificam como médicos e um deles aceita responder às nossas perguntas. Nega a existência de qualquer vala comum e afirma que os corpos correspondem sobretudo a civis e a militares ucranianos. “Nós examinamos cadáveres de civis e soldados que morreram em Mariupol. Na verdade, emitimos um atestado médico de óbito”, explica. Perguntamos directamente sobre valas comuns e vítimas do exército russo e de Donetsk. Contesta que é “mentira”. “Há dois cemitérios em Staryi Krym e Mangush [com estes corpos]. Uma sepultura separada, um caixão e uma placa com um número são alocados para cada corpo. Depois da autópsia de cada cadáver, juntamente com a equipa do Ministério Público, a empresa pública [funerária] Ritual trata das sepulturas”, contesta. De seguida, confirma que nestas sepulturas estão também soldados ucranianos e corrige em alta os números que tínhamos em Mangush para 300 mortos. Como afirmaram os civis que estavam no cemitério, também diz que estes enterros começaram há cerca de um mês.
No dia seguinte, decidimos visitar o cemitério de Stary Krym. Neste caso, são centenas de campas a perder de vista. No total, mais de 650 pessoas estão enterradas em sepulturas recentes. O cemitério é enorme. Como se estivessem todos os cemitérios de Lisboa juntos. Provavelmente, o maior de Mariupol. O cenário de Mangush repete-se mas desta vez confirmamos que estas pessoas estão dentro de caixões porque quando chegamos há um trabalhador que opera uma escavadora para abrir uma fileira que possa receber novos corpos. No fundo, vários caixões de madeira. Ao volante desta máquina, Danya nega a existência de valas comuns. Não se identifica nenhuma evidência nesse sentido. “Não há valas comuns aqui. Vê os caixões deitados ali? Debaixo daqueles números. Então, as pessoas que chegam à procura dos seus familiares têm essa referência”.
Enquanto caminhamos entre as campas, vemos uma cruz com um nome e data de nascimento e morte. O coração acelera enquanto o cérebro faz contas. Este apelido corresponde ao de uma idosa que uma semana antes havia comentado o desaparecimento do seu filho junto ao teatro de Mariupol. O ano de nascimento é o mesmo que nos havia dito e a data da morte coincide com o bombardeamento do teatro. Aquela mãe perdeu o filho mas não temos forma de lhe comunicar a notícia.
Mariupol tenta regressar à normalidade
Já se vê gente a trabalhar para recuperar o que é recuperável. Há mais gente nas ruas, há mercados de alimentos. A batalha pelo controlo da cidade está praticamente terminada. Apenas sobra o Azovstal, onde se concentram as últimas forças ucranianas. No resto de Mariupol, sob controlo separatista, as novas autoridades procuram recolher corpos das ruas com a ajuda de bombeiros. Nos canteiros, há civis enterrados com cruzes e flores. São vítimas de uma batalha sem quartel e, quem sabe, sementes para um futuro que se espera de paz. Mas há muitos perigos à espreita. As tropas ucranianas deixaram várias minas espalhadas por várias zonas da cidade na sua retirada para o Azovstal. Descobrimos uma vítima destes explosivos num bairro junto ao mar. Uma idosa esvaía-se em sangue e tivemos de interromper o ofício de jornalista para fazer um garrote à perna desta mulher. Enquanto o fazemos, explica que outra mulher pisou a mina e morreu. Ela foi atingida pela metralha na perna e precisa de cuidados médicos. É o que farão mais tarde bombeiros e soldados separatistas.
Apesar do elevado grau de destruição, a maioria das pessoas com quem falamos justificam a intervenção russa. É notória a influência russa nesta cidade onde sempre ganharam partidos russófonos. Alguns acusam grupos neonazis como o Batalhão Azov de cometer atrocidades, roubos e perseguições. Dado o contexto militar, é normal que quem defende Kiev prefira esconder a sua posição mas aparece- -nos uma mulher à porta de uma casa que nos pergunta pelo curso da guerra. Vê os capacetes e os coletes com a palavra “press” e confessa a vontade de fugir para ocidente. Até à chegada das tropas russas, era agente da polícia ucraniana. Agora vive na longa espera de poder abandonar Mariupol.
Batalhão Aidar em Lugansk
O mar que banha Mariupol leva o nome de Azov e um dos principais rios que atravessam a região de Lugansk chama-se Aidar. Estes dois nomes foram os escolhidos para baptizar os principais batalhões neonazis que operam em Donbass. É a base do Batalhão Aidar que visitamos na região de Lugansk. Para lá dos portões, encontramo-nos com duas vítimas deste grupo que integra as forças armadas ucranianas. Ivan conta-nos que houve gente torturada e assassinada neste lugar. Para descrever melhor estes crimes, visitámos o hospital local, onde o médico legista nos confirmou a chegada de vários corpos com sinais de tortura. Roman era médico neste hospital antes do controlo separatista e revela que reportou os crimes à polícia ucraniana mas não sabe até que ponto chegou a investigação.
Para além dos crimes, a ideologia neonazi professada por este batalhão ficou marcada nas paredes da base. Lá dentro, atravessámos corredores escuros, celas húmidas e numa sala ampla explicaram-nos que ali faziam simulações de execuções para aterrorizar os presos. O relato é parecido ao que ouvimos semanas antes na antiga sede dos serviços secretos ucranianos. No segundo piso, encontramos autocolantes que ilustram soldados ucranianos a matar comunistas e separatistas. Também um cartaz com o rosto de Vladimir Putin dentro de um alvo. Na parede, “Deus protege Aidar” e um crucifixo. Continuamos a vasculhar o lugar e encontramos uma suástica desenhada numa parede ao lado das iniciais das SS nazis.