A Voz que nasceu há 140 anos

A Voz do Operário celebra no dia 13 de fevereiro 140 anos de uma longa trajetória que começa quatro anos antes, ainda em 1879, na sequência de uma conversa durante a pausa para o almoço de um grupo de operários tabaqueiros. Hoje, é uma instituição sólida, de mérito reconhecido pelas autoridades, mas, sobretudo, pela comunidade onde se insere. Enraizada nos valores daqueles trabalhadores de há quase século e meio, A Voz do Operário nunca deixou de estar ao serviço dos mais desfavorecidos, defendendo o progresso, a justiça social e a paz.

Com cerca de 5 mil sócios e 250 trabalhadores, tem espaços na Graça, Ajuda e Restelo na cidade de Lisboa e na Baixa da Banheira, Lavradio e Laranjeiro, nos concelhos da Moita, Barreiro e Almada. Mais de 1100 alunos passam diariamente pelas diferentes escolas d’A Voz do Operário, da creche ao 6.º ano, num modelo de ensino alternativo, progressista e democrático, inspirado na Escola Moderna.

Mas A Voz do Operário é muito mais do que uma escola. A intervenção na área do apoio social é uma realidade que acompanha a instituição desde a sua fundação. Para além do centro de convívio com atividades para maiores de 55, A Voz do Operário dá apoio domiciliário a quem não consegue fazer a sua vida doméstica. Simultaneamente, a cantina social serve refeições à população mais carenciada e há até um cabeleireiro que faz a sua arte a um preço reduzido para sócios.

Com uma história impressionante, a biblioteca é outro dos espaços que revelam a marca do tempo, com obras inéditas e com um inestimável património literário, sobretudo no campo do marxismo e do movimento operário. Por outro lado, conserva um conjunto de protocolos com diferentes associações que encontram aqui um espaço para desenvolver a sua atividade em proximidade com os sócios d’A Voz do Operário. É o caso da EIRA e as Produções Real Pelágio, que desenvolvem a sua atividade no Espaço do Teatro da Voz.

Conhecida pela programação cultural que promove, o quase centenário salão do edifício na Graça abrilhanta qualquer atividade com a sua beleza. Concertos, peças de teatro, festivais de cinema e festivais de música são presença regular neste espaço, onde também todos os anos a Gala de Fado traz a celebração e reconhecimento deste género musical.

Também nas Festas de Lisboa, a instituição é marca de alegria com o seu conhecido Arraial e com a participação da sua marcha infantil nos desfiles das Marchas Populares.

Verdes anos

Em 2018, A Voz do Operário lançou um livro com os 135 anos de história da instituição, a cargo de Alberto Franco. Fruto de uma profunda investigação, o autor conta que o trabalho dos operários tabaqueiros começava cedo e prolongava-se por 14 ou 15 horas diárias. Sempre em silêncio. Se alguém ousasse falar, era castigado com dias de suspensão e, se fosse rapaz, era alvo de chibatadas. Raul Esteves dos Santos, que investigou a fundo o trabalho nas fábricas de tabaco e dirigiu durante vários anos A Voz do Operário, escreveu que os operários que nessa indústria empregavam a sua atividade trabalhavam em “péssimas condições higiénicas, com matérias-primas que lhes danificavam e auferindo vencimentos insignificantes, sofriam uma vida miserável”. Antes da saírem da fábrica, os operários eram revistados para que não houvesse qualquer roubo de tabaco.

Só uma pequena parte da riqueza produzida chegava aos bolsos destes trabalhadores. As famílias operárias viviam amontoadas em zonas pobres de Lisboa como Xabregas, Beato, Alcântara, Alfama, Graça e Mouraria. Era o tempo das mulheres e homens que nunca puderam ser meninos. Em 1881, havia 4021 operários tabaqueiros e era a indústria mais valiosa da economia portuguesa, mas uma dura crise levou ao desemprego e ao decrescimento na produção com uma quebra importante nos salários reais. Com a fome a visitar a casa destes trabalhadores, só a Associação União Fraternal dos Operários da Fabricação de Tabacos, organização mutualista, fundada em 1863, veio em socorro.

Em 1879, oito anos depois da formação do primeiro governo operário da história com a Comuna de Paris, um grupo de operários aproveitou a pausa do almoço para debater problemas laborais. Custódio Gomes, analfabeto, queixou-se da falta de um jornal que retratasse a dura realidade dos trabalhadores tabaqueiros: “Soubesse eu escrever, que não estava com demoras. Já há muito que tínhamos jornal; bem ou mal, o que lá se disser é o que é a verdade. Amanhã reúne a nossa Associação e hei de propor que se publique um periódico que nos defenda a todos e mesmo aos nossos companheiros de outras classes”. No dia seguinte, era aprovada a proposta de lançar A Voz do Operário, jornal que está hoje entre as dez publicações mais antigas do país em circulação.
O primeiro diretor, Custódio Braz Pacheco, expressou assim a missão do jornal: “pugnar denodamente pelos interesses materiais e morais da classe que representa; concorrer quanto possível para a educação profissional e moral da classe operária e instrução do povo, defender os que sofrerem injustiças, vexames e violências; promover o desenvolvimento da indústria e do comércio, e trabalhar incessantemente para o bem estar social em harmonia com o presente programa”.

A fundação da Sociedade Cooperativa A Voz do Operário

Três anos mais tarde, em agosto de 1882, a publicação enfrenta problemas de financiamento e a administração pede a colaboração de todos os assinantes para evitar a suspensão. No mês seguinte, apela-se a uma assembleia geral para encontrar uma solução. A via para garantir a sobrevivência do jornal foi a criação de uma cooperativa com o mesmo nome. Em 13 de fevereiro de 1883, há 140 anos, numa Assembleia Geral dos “assinantes auxiliares” do então semanário, nasceu a Sociedade Cooperativa A Voz do Operário.
“Um jornal e uma carreta funerária, assim começa A Voz do Operário”, escreveu o historiador Fernando Piteira Santos. O facto é que muitas famílias não tinham sequer meios para pagar as despesas com a morte dos seus membros. Com a nova cooperativa, os funerais passaram a ter alguma dignidade e a assistência funerária teve um enorme impacto social, pela sua relação com os sentimentos mais profundos da massa operária. A prestação de tal serviço aumentou substancialmente o número de associados, permitindo que A Voz do Operário se abalançasse a outro tipo de projectos, nomeadamente à criação de escolas. Com a proposta de uma das comissões administrativas presididas por Miguel José Mendes, a educação assumiu um papel de destaque na atividade d’A Voz. Por meio do ensino, arrancar-se-iam “às densas trevas do embrutecimento e da ignorância, a grande maioria analfabeta”, proclamava o primeiro número d’A Voz do Operário. A primeira aula foi dada a 11 de outubro de 1891. Em 1904, oram aprovados novos estatutos, “instituiu-se um cofre de beneficência para o qual cada sócio pagaria uma quota anual de 10 réis, a cobrar em dezembro, destinado à aquisição de fato e calçado para os alunos pobres bem como para os órfãos de sócios quando carecessem de auxílio”.

Outra relevante medida assistencial foi a abertura de uma cantina escolar. Domingos da Cruz, empossado em 1924 como secretário dos Serviços de Instrução d’A Voz do Operário, foi o impulsionador dessa medida. Oficial da Marinha e deputado republicano, ativo divulgador do associativismo e dos princípios mutualistas, Domingos da Cruz era sócio d’A Voz do Operário desde 1911.

A sede d’A Voz

Em 1906, o redator do jornal, José Fernandes Alves, propôs que se pedisse um terreno para a construção de um espaço com a dimensão que a atividade regular exigia. O primeiro-ministro, João Franco, concedeu um terreno na zona onde se encontra a atual sede d’A Voz do Operário. O lançamento da primeira pedra aconteceu a 13 de outubro de 1912 na presença de Manuel de Arriaga, o primeiro Presidente da República. Uma multidão de operários enchia as ruas e soavam foguetes enquanto chegavam também os principais dirigentes d’A Voz, o professor Agostinho Fortes, representante da Câmara Municipal de Lisboa, o arquiteto Norte Júnior, o almirante Ferreira do Amaral e António Maria da Costa, o construtor da obra.

A primeira parte do edifício viria a ser inaugurada em dezembro de 1922 também em ambiente de festa. O salão foi oficialmente inaugurado em 1930, no decurso das comemorações do 51º aniversário do jornal, e era já, como hoje, fonte importante de receitas para a instituição. Até hoje, tem sido palco de inúmeros géneros musicais mas o fado marca a história musical d’A Voz, também quando ainda era visto como pouco respeitável e se limitava a tabernas e prostíbulos.

Uma Voz que o fascismo não se atreveu a apagar

A 28 de maio de 1926, dá-se o levantamento militar que impõe uma ditadura que se há de prolongar até 1974. Logo de início, nas páginas do jornal, o redator José Fernandes Alves assume que não aceita a ideia da sujeição a uma ditadura militar. “Sabemos perfeitamente o que se tem passado na Itália e na Espanha, com as odiosas ditaduras de Mussolini e de Rivera. Nesses dois países, a classe trabalhadora vive esmagada, calcada pelo tacão da bota dos odiosos ditadores. (…) Ditadura militar não a aceitaremos nós, não a aceitará o povo português, cioso da sua liberdade e das suas regalias”.

Durante os primeiros anos do fascismo, A Voz do Operário é o refúgio de muitos opositores e sindicalistas perseguidos pelo novo regime. Vários deles são presos e torturados. Perante o prestígio e a influência da instituição, a ditadura opta pelo não encerramento das instalações e cria uma comissão para gerir A Voz do Operário. Muitos artigos do jornal foram alvo de censura mas a publicação prosseguiu o seu trabalho até aos dias de hoje.

A revolução que derrubou a ditadura

Durante os anos finais da luta contra o fascismo, várias organizações encontraram na Voz um espaço para se reunirem. Foi o caso dos sindicatos que logo deram origem à CGTP-IN. Quando a revolução toma as ruas do país, a instituição toma o lado dos trabalhadores e da população.

A 10 de maio de 1975, A Voz do Operário recebeu uma chamada anónima informando que daí a meia hora rebentaria uma bomba suas instalações. “Chegou a hora de calar A Voz do Operário”, foi assim que terminou o telefonema. As centenas de crianças que se encontravam dentro do edifício foram imediatamente evacuadas e a polícia revistou as instalações sem ter encontrado qualquer engenho explosivo.

Nesse período, A Voz do Operário foi palco de uma intensa atividade social e política pela democratização do país lançando as sementes para o seu futuro.

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