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Quando maioria absoluta não significa estabilidade

O PS pediu maioria absoluta para dar estabilidade ao país. A 7 de outubro, o primeiro-ministro apresentou a sua demissão ao Presidente da República, que a aceitou. O próximo executivo será o 24º governo a entrar em funções desde que há eleições livres. Com eleições legislativas marcadas para 10 de março, importa fazer o balanço dos governos liderados por António Costa

Apesar do equívoco promovido em vários órgãos de comunicação social, este plebiscito não serve para eleger o primeiro-ministro ou o governo. Tem o objetivo de eleger os 230 deputados que compõem a Assembleia da República. Depois, o Presidente da República vai ter de ouvir todos os partidos com assento parlamentar, mesmo que tenham apenas um deputado. Ou seja, também as forças que não podem formar grupos parlamentares. Ouvidos os partidos, Marcelo Rebelo de Sousa vai chamar a pessoa que tem melhores condições para formar governo e cumprir o mandato de quatro anos.

Foi ao arrepio deste preceito constitucional que o então Presidente da República Cavaco Silva chamou o líder do PSD, Pedro Passos Coelho, em 2015, para formar governo tentando omitir que não havia uma maioria de deputados que apoiasse esta opção. De facto, a coligação de direita era a que tinha o maior número de deputados mas não tinha mais deputados que todos os outros partidos juntos. A maioria dos eleitores que acorrera às urnas deu o seu voto a forças políticas que se opunham a Pedro Passos Coelho e acabou por ditar a derrota da coligação Portugal à Frente.

Assim, 11 dias depois de ter sido empossado, Pedro Passos Coelho viu a maioria dos deputados eleitos aprovar uma moção de rejeição que fez cair o seu governo. A queda de um executivo antes do fim do mandato não é exceção em Portugal. Na verdade, dos 23 governos que o país teve desde 1976 só seis é que chegaram ao fim. O ex-líder do PSD tornou-se recordista com o executivo mais curto da história. O governo empossado não chegou a entrar em funções, tendo governado apenas em gestão corrente.

António Costa, então deputado eleito pelo PS, acabou por ser indigitado por Cavaco Silva. Com base em entendimentos assinados bilateralmente pelo PS e os diferentes partidos à sua esquerda, BE, PCP e PEV, e ainda o PAN, dois dias depois, o XXI governo constitucional tomou posse na Assembleia da República. Essa aritmética parlamentar foi inédita porque até esse momento, quando sem maioria, o PS tinha optado por governar sempre com o apoio dos partidos à sua direita. À beira de ver a sua carreira política terminada e com o perigo de pasokização do seu partido, António Costa, então líder do PS, não teve outra opção senão aceitar esse apoio perante um país esmagado pelas políticas neoliberais da troika. 

Com essa fórmula, os trabalhadores recuperaram direitos e conquistaram outros. Contudo, a obstinação do PS em não aprofundar políticas necessárias para a melhoria dos serviços públicos e da qualidade de vida de quem trabalha em Portugal acabou por ditar o fim daquilo a que a direita chamou geringonça. Com boa parte das decisões parlamentares a mostrar uma afinidade maior entre o PS e os partidos à sua direita, a sua opção em não investir mais no Serviço Nacional de Saúde, como pedia o PCP e o BE, ditou o chumbo do Orçamento em 2021.

Nas eleições antecipadas seguintes, o PS pediu maioria absoluta para governar com estabilidade, afastando entendimentos com outras forças políticas à sua esquerda. Com mãos livres para conduzir o país como bem entendia, o PS voltou a ser o PS de sempre. E o governo caiu na mesma.

PS em maioria e PS em minoria

Fruto do contexto político e social, o quadro saído das eleições legislativas em 2015 mostrava que os eleitores tinham apostado num crescimento à esquerda e o PS foi obrigado a aceitar uma solução inédita, sugerida pelo PCP, que podia implicar não governar à direita como tinha feito até então. Os entendimentos entre os quatro partidos – BE, PCP, PEV e PAN – que foram assinados de forma separada com o PS, revelavam, sobretudo, o objetivo de recuperar direitos retirados durante os quatro anos anteriores.

Entre as importantes medidas tomadas que permitiram aos trabalhadores recuperar rendimentos, está a reversão dos cortes salariais na função pública que tinham sido aplicados em janeiro de 2011. Apesar da exigência do fim imediato dos cortes, por parte do PCP, o PS decidiu prosseguir uma linha de devolução gradual e, só em 2017, os trabalhadores do Estado voltaram a receber os salários, os subsídios de férias e Natal e as pensões por inteiro. 

Em 2016, a lei que repôs os quatro feriados – dois civis e dois religiosos – foi publicada, finalmente, como reivindicavam os partidos à esquerda do PS e a CGTP-IN. Passaram novamente a ser feriados obrigatórios o Corpo de Deus (feriado móvel), a Implantação da República (5 de outubro), o dia de todos-os-santos (1 de novembro) e a Restauração da Independência (1 de dezembro).

Dois anos depois, em 2018, foi a vez dos deputados do BE, PCP, e PS aprovarem o fim do corte de 10% no subsídio de desemprego. Esta redução já tinha sido eliminada para os desempregados que recebem uma prestação de valor inferior a um Indexante de Apoios Sociais, ou seja, abaixo de 421,32 euros.

O aumento salarial em 2009 para os funcionários públicos foi de 2,9%, o maior das últimas décadas. Desde então, os salários mantiveram-se congelados e foram ainda afetados pelos cortes durante o governo PSD/CDS-PP. 

Ainda assim, a luta dos trabalhadores e a pressão dos partidos à esquerda do PS permitiram avanços no salário mínimo nacional. A CGTP-IN exigiu sempre mais do que aquilo que o governo queria ceder mas o partido liderado por Catarina Martins optou por impor condições consideradas recuadas e o salário mínimo acabou por aumentar apenas até aos 600 euros, obedecendo ao reivindicado na posição conjunta assinada entre o PS e o BE, quando os comunistas exigiam mais 50 euros. 

Entre 2015 e 2019, o salário mínimo nacional subiu de 505 para 600 euros, melhorando em 14% o poder de compra dos trabalhadores em causa. Mas com os salários gerais estagnados, a atualização fez aumentar a proporção dos trabalhadores abrangidos pelo salário mínimo (de 13,2% em 2014 para 25,7% em 2017).

A história voltou a repetir-se em 2020 com o BE a exigir 650 euros de salário mínimo para 2021 e o PCP a convergir com a CGTP-IN na reivindicação de 850 euros. Em janeiro de 2024, três anos depois, o salário mínimo ainda só está nos 820 euros.

Outra das polémicas medidas que o governo liderado por Pedro Passos Coelho e Paulo Portas tomaram foi o aumento da carga horária semanal de trabalho de 35 para 40 horas na função pública. Para além dos cortes nos salários, isso permitiu ao Estado desvalorizar ainda mais os rendimentos dos trabalhadores da administração pública. Em 2016, a Assembleia da República aprovava, finalmente, o regresso às 35 horas. De fora, ficava com a exigência do PCP da inclusão também dos trabalhadores do privado. Ainda assim, o governo dificultou a implementação da medida em diferentes setores como o da Saúde, espoletando a luta destes profissionais. No mês passado, a Frente Comum exigiu ainda a efetivação do horário de 35 horas para todos, com a dirigente Ana Avoila a sustentar que são cada vez mais as situações de serviços em que este horário não está a ser cumprido “por falta de pessoas”. Já no privado, ficou tudo como estava. Portugal continua a ser um dos países da Europa onde mais horas se trabalha.

À esquerda, BE e PCP incluíram o combate aos falsos recibos verdes nos acordos que assinaram com o PS. Este tipo de vínculo é hoje em dia um dos principais meios pelos quais as empresas e o Estado estendem a precariedade a todas as esferas do trabalho. Foi precisamente um governo liderado por Mário Soares que aprovou a lei dos contratos a prazo que facilitava os despedimentos coletivos e que criou os recibos verdes. Fruto do novo contexto político, com o PS em minoria, a depender dos partidos à sua esquerda, foi criado o Programa de Regularização Extraordinária dos vínculos precários do Estado (PREVPAP). A sua implementação foi uma batalha inacabada que, apesar das muitas resistências do governo, permitiu reduzir a precariedade em muitos setores dos serviços públicos. Em sentido inverso, a recente alteração à legislação laboral que permite alargar o período experimental a troco de multa aprovada na especialidade por PS, BE, PAN, PSD e CDS-PP, com o voto contra do PCP e do PEV, representará, segundo os sindicatos, um retrocesso. Neste momento, com o PS a governar em solitário, a precariedade na administração pública atinge novamente níveis históricos.

No que toca às reformas e pensões, os partidos à esquerda do PS permitiram avanços que também neste caso só não foram mais longe pela resistência do governo. Um desses casos foi a valorização das longas carreiras contributivas. A Assembleia da República aprovou o acesso à reforma antecipada sem penalizações para as carreiras contributivas de quem tenha mais de 48 anos de descontos ou tenha 46 anos de descontos e começado a trabalhar até aos 15 anos. Neste caso, a proposta do PCP de acesso à reforma por inteiro sem penalizações para os trabalhadores com 40 anos de descontos foi recusada.

Também neste contexto, os trabalhadores das pedreiras e das lavarias das minas conseguiram melhores condições de acesso à reforma antecipada com o reconhecimento da Assembleia da República dos riscos que comportam estas profissões.

O poder da troika era tal quando chegou a Portugal que as noites ficaram mais pequenas. O governo liderado por Pedro Passos Coelho aprovou as recomendações do FMI, da UE e do BCE e o trabalho noturno passou a ser contado apenas entre a meia noite e as cinco da manhã. Tudo é uma questão de dinheiro e as empresas em Portugal sabem que empregam mais de um milhão de trabalhadores que desempenham funções depois das 20 horas, segundo o Instituto Nacional de Estatística. Para reverter a situação, o PCP propôs que o ponteiro do trabalho noturno começasse às oito da noite e o BE sugeriu que fosse duas horas depois, às dez. Esta iniciativa teria grande impacto sobre os salários de quem trabalha, uma vez que o trabalho noturno é pago com um acréscimo de 25%. PS, PSD e CDS-PP decidiram chumbar as duas propostas, como chumbaram também o aumento do número de dias de férias de 22 para 25, como era no período pré-troika.

Por proposta dos comunistas, a gratuitidade das creches começou a ser aplicada em 2020 às crianças das famílias mais pobres, abrangendo cerca de 30 mil bebés. Foi em resultado da iniciativa do PCP aprovada pela Assembleia da República em outubro de 2021 que os bebés nascidos depois de 1 de setembro de 2021 passaram a ter direito a creche gratuita. Contudo, a falta de uma rede pública de creches, chumbada pelo PS e pelos partidos à sua direita, torna difícil a materialização deste direito a todas as famílias. Os dias obrigatórios de licença parental e o descongelamento parcial de carreiras na administração pública foram outras conquistas.

Ainda em 2019, o parlamento aprovou a gratuitidade dos manuais escolares até ao 12.º ano, com os votos contra do CDS-PP e a abstenção do PSD, graças aos diplomas do PCP e do BE. Também no mesmo ano, concretizou-se o alargamento do passe social intermodal a todos os operadores, a todas as carreiras e a todo o território da área metropolitana de Lisboa. Centenas de milhares de utentes tiveram uma redução no custo do passe muito significativa através de uma já antiga proposta do PCP.

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