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Comércio local. Pode estar de regresso a Lisboa de montras vazias

Em Lisboa, são muitos os bairros que foram vítimas da turistificação da cidade, da especulação imobiliária, da proliferação de supermercados de proximidade e da pandemia. As consequências da reconfiguração social e económica ficaram ainda mais à vista durante a crise sanitária que o mundo vive há mais de ano e meio. Para o comércio local, é mais um desafio a enfrentar.

Francisco Cavalheiro vive no bairro desde sempre. “Um bairro de gente pacata”, sublinha. Com uma mercearia na esquina da Rua Rui Barbosa com a Rua Washington, na zona de Santa Engrácia, há mais de 60 anos, recorda os tempos em que havia gente por todo o lado. “As casas estavam todas alugadas, toda a gente tinha hóspedes e esta rua estava cheia de rapaziada”, lembra à Voz do Operário. Depois, foi o êxodo para a periferia de Lisboa. O negócio perdeu assim muitos clientes, mas aponta também o dedo às grandes superfícies comerciais e aos supermercados de proximidade. “Há aqui perto um Meu Super, o que acaba sempre por complicar as coisas. Não são os indianos, não são os outros minimercados, é mais os Pingo Doce, esses é que roubam clientes”, defende o comerciante.

Com a pandemia, ao contrário do que esperava, o negócio até começou bem. Logo no primeiro ano, com as medidas de restrição no acesso aos supermercados, houve uma corrida aos minimercados. “Foram uns meses bons”, considera. Mas foi sol de pouca dura. Agora, tem uma quebra de cerca de 30% nas vendas. Atrás de Francisco Cavalheiro, estão várias prateleiras de diversos produtos bem arrumados. Com 76 anos, não perdeu o jeito para manter a mercearia arrumada ‘à antiga’.

Confessa que não sabe muito sobre os apoios do Estado e da autarquia aos micro e pequenos empresários. Não faz ideia se são ou não a fundo perdido. Não concorreu. “A gente cá se vai governando”, lança, como se a resistência de seis décadas garantisse por si só que tudo será como dantes.

Também se queixa da queda do turismo. Dantes, “havia muito estrangeiro”. Diz que se vendia “muita garrafa de vinho e queijo”. Agora, nem por isso. E recorda que as mercearias são muito importantes nos bairros. “Há muitos velhotes que só se sentem bem quando estamos abertos. Cumprimos uma função. Se deixamos de ver uma pessoa vários dias, tentamos contactar a ver se está tudo bem”.

Mais abaixo, na Rua do Vale de Santo António, Manuel António Cipriano conversa com uma jovem cliente à porta do mini-mercado Pomar do Vale. São já quatro décadas à frente deste negócio. Como Francisco Cavalheiro, queixa-se também da debandada geral. Os mais velhos estão a morrer e o bairro fica vazio. Muitas casas estão destinadas ao alojamento local. Também sentiu uma forte subida nas vendas durante a pandemia e até chegou a fazer entregas de produtos. “Temos uma relação muito boa com os idosos”, garante. Mas com o regresso à quase normalidade, o negócio caiu na ordem de entre 20% a 30%. A abertura de supermercados de proximidade pertencentes às grandes cadeias de retalho é algo que o preocupa. “Devia haver regulamentação. Não podem estar tão perto uns dos outros. A 400 ou 500 metros está o Meu Super e depois está o Minipreço. São lojas umas em cima das outras e isso tudo tem muita influência”, protesta.

Com 70 anos, este comerciante tem um sonho. “A ver se aparece um jovem que queira ficar com isto. Gostava que alguém mantivesse este negócio”.

O drama de milhares de micros e pequenos empresários

De acordo com Jorge Pisco, presidente da Confederação das Micro, Pequenas e Médias Empresas (CMPME), há 1,2 milhões de negócios desta dimensão em Portugal, o que representa não só a esmagadora maioria do tecido empresarial do país como integra 85,8% do total de trabalhadores a nível nacional. À Voz do Operário explica que o que mais se refletiu nos pequenos e médios empresários, sobretudo no setor dos comerciantes, foi “a falta de apoios concretos” e a “situação muito atribulada” que se verificaram nesses apoios. Denuncia que “havia sempre um conjunto de burocracias e de questões que se foram colocando, não só a nível do governo mas da autarquia de Lisboa que acabavam por ter repercussões muito grandes neste tecido”. E explica que os os micro empresários “não têm estruturas para poderem recorrer a estes apoios”. Por isso, recorreram aos contabilistas e foi através destes que avançaram”. Muitos, contudo, “não tinham situações tributárias regularizadas” e não podiam ter acesso aos apoios. Recorda também que há uma verba específica para os gastos em equipamentos de proteção individual cuja tranche final ainda não chegou porque é um apoio no âmbito do Programa 20/20 com muitas regras para cumprir.

O facto é que ninguém estava preparado para o impacto de uma pandemia deste tipo. Mas as empresas desta dimensão não esperavam os “atrasos substanciais” de um governo que anunciou a regularização da situação “no fim do mês de maio”, recorda Jorge Pisco. No apoio ao pagamento das rendas, tampouco está efetuado o segundo pagamento porque a autoridade tributária “não viabilizou a questão dos contratos”. O porta-voz do desespero das micro, pequenas e médias empresas defende que tudo isto traz grandes dificuldades numa situação de pandemia em que estes negócios tiveram de abrir e fechar várias vezes e mudar horários. 

“As empresas estão descapitalizadas. No caso concreto da CMPME, logo em março do ano passado, reivindicamos que um dos apoios que deveria de ter existido para as empresas era um fundo de tesouraria para que fizessem face a estas dificuldades que têm neste momento”, defende.

A grande preocupação que temos manifestado nas reuniões que temos não só com o Ministério da Economia mas também com o Ministério do Trabalho é que nesta fase da retoma vê-se alguma melhoria do ponto de vista do turismo mas é muito provável que esta situação se venha a agravar em breve e que possa levar ao encerramento de muitas empresas e ao desemprego”, explica.

Comércio tradicional em perigo

Nas ruas, entende que começam a ver-se muitos negócios encerrados definitivamente. “Ou seja, muitas daquelas lojas que a gente conhecia, que era o comércio tradicional, isso fechou e provavelmente não vai retomar”. É provável que se volte a ver Lisboa como no tempo da troika, “com muitas lojas fechadas”, e lembra que há muito comércio que vive de outras atividades. Dá o exemplo dos cabeleireiros. “Muitos cabeleireiros fecharam porque o próprio teletrabalho também levou a que deixasse de existir na zona central da cidade um conjunto substancial de empresas a funcionar”. Mas é um problema que também afeta a restauração e o comércio tradicional.

Sobre as mercearias de bairro, confirma a quebra nas vendas e o regresso da maioria da população às grandes superfícies e o perigo da proliferação de mais supermercados de proximidade. “Em termos de mercado, têm melhores condições de abastecimento e preços que acabam por asfixiar o pequeno comerciante. Nós temos vindo a assistir às grandes superfícies a abrir aquelas lojas de bairro, com a mesma linha gráfica e com preços semelhantes aos que têm nos hipermercados. Isso dá cabo do comércio local. Não há comerciante que consiga combater os preços que eles praticam, isso não há volta a dar”, descreve.

Naturalmente, explica, há grandes dificuldades para negócios que não têm gabinetes jurídicos para enfrentar a burocracia do acesso aos apoios. E dá o exemplo de outro setor afetado. Os donos dos quiosques das revistas “suportam o custo do pagamento da distribuição dos jornais”. Ou seja, é mais um custo que têm. “Com os custos de luz, água e todas as restantes despesas, as empresas estão descapitalizadas”. Em reuniões com o governo, a CMPME tentou alertar para esta realidade e o próprio executivo assumiu “que não tinha noção que o tecido empresarial português só tinha dinheiro um mês de atividade, que estas empresas vivem com a receita de um mês para pagar salários e despesas”.

Nesse sentido, defende que uma das formas de superar a burocracia seria a criação de um gabinete de apoio aos micro e pequenos empresários a nível nacional. Muitas vezes, “não sabem usar o e-mail ou aplicações informáticas. A realidade é outra, enquanto que uma média empresa tem contabilistas, tem juristas, tem essas coisas todas, os micros não têm isso e muitas vezes sequer formação”.

O presidente da CMPME recorda que este tipo de comércio local tem uma ligação ao bairro onde se insere. Toda a gente se conhece e é “uma diferença com outros tipos de superfície”. Conhecem-se “porque se vai à padaria, à peixaria ou à mercearia. Se a dona Maria ou o senhor José não aparecem, ficam preocupados”.

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