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Redes sociais

Alô, sabia que pode estar a ser espiado neste momento?

Há quem pense que possa estar a viver numa realidade distópica quando se fala de milhares de funcionários que em todo o mundo lêem as mensagens que trocamos em caixas privadas nas redes sociais para saberem aquilo de que gostamos e aquilo de que não gostamos. A Voz do Operário ‘entrou’ num dos escritórios onde tudo isso acontece pelos olhos de um ex-trabalhador que descreveu como estas plataformas se intrometem nas nossas vidas.

“Pedro, já leste este artigo d’A Voz do Operário sobre as redes sociais?”. Imaginemos que uma leitora desta peça jornalística decide recomendá-la a um amigo através das mensagens privadas do Facebook. Supõe-se que só estas duas pessoas estariam a par desta conversa. Mas não. Do outro lado pode estar alguém como Ricardo, nome fictício que vamos dar a um ex-trabalhador desta rede social que aceitou descrever à Voz do Operário, sob anonimato, como funciona o Facebook.

A trabalhar num edifício em Algés com centenas de pessoas, cujo objetivo é monitorizar tudo o que fazemos nas redes sociais, Ricardo participava, entre outros, num projeto aparentemente inócuo e até com utilidade prática. “O Facebook tem um mecanismo, que é o “crisis response”, um projeto que gera um evento de crise quando acontece alguma catástrofe natural ou humana”, explica. Quando se abre a página nesta rede social, há uma frase que chama a atenção: “Pessoas em todo o mundo usam o Facebook para se conectar e apoiar umas às outras em situações de emergência”.

De acordo com Ricardo, que trabalhava subcontratado para esta empresa norte-americana, o Facebook usa este projeto “para dar a sensação que tem um rosto social e que não é apenas uma plataforma de controlo”. O “crisis response” ficou famoso quando começou a notificar utilizadores que se encontravam em zonas de catástrofes naturais, guerras ou atentados e eles se deixavam marcar como seguros ou, em caso contrário, reportavam à rede social que estavam em perigo. “O problema é que uma tempestade em Israel pode ser considerada uma catástrofe para o Facebook mas nunca um bombardeamento sobre a Faixa de Gaza”, denuncia.

Para Ricardo, esta plataforma está absolutamente alinhada “com aquilo que os Estados Unidos consideram que é uma crise” e exemplo dessa política interna é também a forma como aborda os conflitos no Médio Oriente. “Muitas pessoas usavam notícias da Russia Today (RT) para partilhar informação e recebemos a orientação para que essas publicações fossem marcadas como material sensível. Não censurávamos essas notícias porque não violavam a política do Facebook, mas metiam-nos a marcar essas publicações como material sensível para ajudar a reduzir o algoritmo de expansão da notícia”. 

Para além deste questionamento, não foi fácil para este ex-trabalhador lidar com as informações que tinha de analisar. Teve de assistir àquilo a que chama de catacumbas da humanidade. “Nós estamos ali a fazer trabalho de polícia sem qualquer formação. Metem-nos a ver crimes. Material que não devíamos estar a ver. Nós acediamos às coisas que nos eram reportadas: suicidios ao vivo, mortes feitas por facções criminosas, pedofilia, ‘revenge porn, etc’. Ricardo defende que estas informações deviam ser analisadas por “autoridades competentes e por gente preparada psicologicamente” e recorda que lhes diziam que eram “o backoffice para salvar a humanidade”.

Casos de redes de escravatura e ameaças de terrorismo caem-lhes nas mãos e com esta responsabilidade sobre os ombros, estes trabalhadores não têm mais do que um pequeno curso de “content moderation” [moderação de conteúdos]. “Há muitos danos psicológicos para quem faz este trabalho”.

“Gostos” dos utilizadores  rendem milhões

Mas se estes são casos graves, não menos grave é o que nos conta Ricardo sobre a utilização comum das redes sociais e que coincide com a generalidade das denúncias contra estas plataformas. Este ex-trabalhador confirma que no departamento de projetos do Facebook, onde se encontrava, um dos objetivos era “treinar o algoritmo”. Explicado de outros modos, um dos projetos dedicava-se a visualizar as mensagens privadas que os utilizadores trocam entre si, com o intuito de referenciar os gostos e com isso encaminhá-los para publicidade relacionada com aquilo que lhes interessa.

É assim que empresas destas fazem milhões de lucro anualmente. “Nós ajudávamos o Facebook a autonomizar o algoritmo procurando saber, por exemplo, qual era o assunto mais falado nas caixas de mensagens. Também para saber se determinados utilizadores estão vivos ou mortos para transformar os seus perfis em memoriais e para saber a idade exata de quem usa o Facebook para detetar se se registaram com uma idade falsa”, descreve Ricardo. Ou seja, afinavam o algoritmo verificando se determinadas informações tratadas automaticamente eram verdadeiras ou falsas. “Tanto que brincávamos uns com os outros dizendo que estávamos a trabalhar para ficar sem trabalho, a treinar a máquina para que nos substitua um dia”, recorda.

Depois do documentário na Netflix sobre o perigoso impacto das redes sociais nas pessoas, com especialistas em tecnologia, que corrobora muito daquilo que este ex-trabalhador contou à Voz do Operário, os alarmes voltaram a soar sobre o uso que estas empresas dão à atividade dos utilizadores. Atualmente, a plataforma mais usada é o Youtube, que atrai 89% dos internautas, seguida pelo Whatsapp, com 86%, o Facebook, que retém 79%, o Instagram com 65% e o Twitter que atinge os 53%.

Entre os mais jovens, sobretudo menores de idade, o Youtube ainda é o preferido para ver vídeos mas apontam o Tik Tok como a rede social preferida, seguida do Instagram. O tempo que passam atualmente conectado a estas plataformas aumentou à volta de 100% nos últimos anos e durante os meses do confinamento chegou a ser de 200%.

De facto, o estudo e o trabalho a partir de casa, assim como o distanciamento físico de familiares e amigos, empurrou centenas de milhões de pessoas para uma utilização mais intensiva destas plataformas, durante a pandemia, e as empresas proprietárias viram os seus lucros disparar. No fim de junho, de acordo com a Bloomberg, o valor combinado da Amazon, Apple, Facebook e Google aumentou em 250 mil milhões de dólares durante o segundo trimestre fiscal deste ano. A Alphabet, que é a empresa-mãe do gigante tecnológico Google, registou 38,297 mil milhões de dólares em receitas durante o último trimestre. Já a Facebook duplicou o lucro no primeiro trimestre deste ano, para 4.902 milhões de dólares, face a igual período do ano anterior.

Uma poderosa ferramenta política

Se a denúncia de Ricardo de que o Facebook deu orientações para reduzir o alcance das publicações relacionadas com a página de notícias russa RT mostra alguns dos perigos de uma plataforma que é utilizada por centenas de milhões de pessoas em todo o mundo, a utilização dos dados de quem usa esta rede social para influenciar o discurso político tendo como base os nossos interesses ou para condicionar as nossas escolhas através de propaganda é uma realidade.

Condenado a uma multa de 5 mil milhões de euros pelas falhas que permitiram à consultora Cambrigde Analytica traçar perfis psicológicos com os dados de 87 milhões de utilizadores, alegadamente vendidos à campanha que elegeu Donald Trump presidente dos Estados Unidos, a plataforma fundada e liderada por Mark Zuckerberg em 2004 cedeu milhares de informações com fins políticos.

Contudo, mesmo sem venda de dados particulares dos utilizadores para publicidade ou propaganda, o Facebook também é campo de batalha política e vende os seus serviços para propaganda de campanhas em todo o mundo. Nesse sentido, em agosto de 2019, os investigadores Manuel Beltrán e Nayantara Ranganathan criaram uma plataforma que reunia e organiza os montantes que 150 partidos de 34 países pagaram para ter publicidade nas redes sociais. O objetivo era defender a transparência, num estudo sobre a propaganda política na era das ferramentas digitais. O ad.watch descreve em milhões e em gráficos quanto é que cada partido ou ator político individual pagou ao Facebook, também a que região e grupo etário é que dirigiu as publicações. A ferramenta é, segundo os investigadores, essencial para perceber o “poder de persuasão que o uso de dados pessoais facilita” nas estratégias partidárias. 

À revista Vice, Manuel Beltrán afirmou que “quanto mais oculto esses mecanismos de propaganda permaneçam mais efetivo é o modelo de negócio”. De acordo com o fundador da ad.watch, o Facebook não está muito interessado em rever o modelo de negócio. Diz que “é sistematicamente oposto à transparência quando se trata de anúncios políticos”.

Por enquanto, em Portugal, as eleições não se ganham nas redes sociais mas estas são já um campo de batalha política. Parte das organizações partidárias apenas utiliza ferramentas gratuitas do Facebook sem apostar em soluções pagas. Mas há quem recorra à plataforma investindo elevadas verbas para que esta rede social recorra ao seu banco de dados e os promova através do algoritmo junto dos utilizadores. Os partidos podem escolher, aliás, algumas das características das pessoas a que querem chegar.

Dos 17 partidos que se apresentaram às europeias de maio de 2019, apenas seis entraram no negócio da compra e venda do alcance das publicações no Facebook e no Instagram. Dos partidos com representação parlamentar, só o PCP, PEV e PAN ficam de fora das contas do ad.watch. Não investiram nem um cêntimo na promoção dos conteúdos nas redes sociais. Contas feitas, PS, PSD, CDS, Iniciativa Liberal, Livre e o Bloco de Esquerda, na figura do órgão de propaganda Esquerda.net, gastaram no total 26 mil euros em publicidade entre dezembro do ano passado e o último mês de julho. São 162 publicações em nove meses. Metade do bolo é do Esquerda.net. A página do BE gastou cerca de 13 mil euros. Tanto como a soma do que foi gasto, no total, pelos outros cinco partidos escrutinados na plataforma. 

Gigantes da tecnologia e a justiça

Tantas vezes coniventes com estas plataformas, a União Europeia e países como os Estados Unidos permitiram durante anos que as regras que regulamentam a atividade das redes sociais fossem desadequadas e que não protegessem os direitos dos utilizadores. Por exemplo, a Comissão Europeia diz querer alterar agora a atual diretiva europeia para o comércio eletrónico que data de 2000, quando ainda não existia Facebook e a Google tinha apenas dois anos.

De acordo com o El País, há apenas um mês, os congressistas democratas na Câmara dos Representantes divulgaram um extenso relatório sobre os gigantes da tecnologia em que acusam a Google, bem como a Apple, a Amazon e o Facebook, de abusarem da sua posição dominante no mercado. Com o crescente impacto dos gigantes da tecnologia na vida social, o escrutínio da atividade de empresas como a Google, Apple, Amazon e Facebook é cada vez maior. O medo da concentração de poder, dados e dinheiro nas mãos destas entidades é tal que uniu conservadores e democratas. 

Os congressistas, assim como o governo federal e diferentes associações de consumidores, há muito que acusam a Google, propriedade da Alphabet Inc, com um valor de mercado superior a um trilião de dólares, de abusar do seu poder nas pesquisas na internet, mercado esse que representa quase 90% nos Estados Unidos, e de tentar suprimir a livre concorrência e aumentar os seus lucros.

Esta relação entre as redes sociais e os seus utilizadores é tão tóxica que o Departamento de Justiça dos Estados Unidos anunciou também em outubro uma queixa contra a Google por abusar da sua posição no mercado da publicidade online. Há mais de um ano que 48 procuradores-gerais de vários estados norte-americanos formalizaram uma investigação contra a empresa californiana e agora as autoridades querem focar-se nas acusações à posição de monopólio que a Google ocupa através das pesquisas na internet. 

A realidade da internet não é a mesma que há décadas quando surgiu mas já então houve quem alertasse para um futuro sombrio se nada fosse feito para defender a liberdade e o acesso ilimitado à informação. Vários hackers combateram, então, o aparecimento de monopólios de vários gigantes da tecnologia. De acordo com o jornalista Steven Levy, que estudou o fenómeno, resumiu os valores que norteavam estes ativistas. Partilha, abertura, descentralização, livre acesso aos computadores e melhoria do mundo faziam parte de uma espécie de mandamentos que espelham essa filosofia: “O acesso a computadores, e qualquer outro meio que seja capaz de ensinar algo sobre como o mundo funciona, deve ser ilimitado e total; toda a informação deve ser livre; desacreditar a autoridade e promover a descentralização como forma prioritária de organização do trabalho; os hackers devem ser julgados segundo o seu hacking, e não segundo critérios sujeitos a enviesamentos tais como graus académicos, raça, cor, religião ou posição social; é possível criar arte e beleza no computador; os computadores podem mudar a vida para melhor”.

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