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História

O “companheiro Vasco” nasceu há cem anos

Largos dias têm cem anos. Tantos quanto os que passam desde que nasceu Vasco Gonçalves. Foi há quase 47 anos que pela primeira e única vez, até à data, os portugueses apelidaram um primeiro-ministro de companheiro para serem a sua muralha de aço. Com o general à frente do governo, a revolução viu o aprofundamento do processo e das conquistas sociais.

São 11h45 e ouvem-se explosões junto ao Aeroporto de Lisboa. Dois aviões e quatro helicópteros atacam o Regimento de Artilharia Ligeira (RAL1) com rajadas sucessivas. A trabalhar ali perto, uma mulher agarra no telefone e liga para a cunhada: “Estão a bombardear o RAL1”.

Do outro lado da chamada está Margarida Lucas, assessora do chefe do governo. Estamos em 11 de março de 1975 e o primeiro-ministro é o general Vasco Gonçalves. Mal pousa o telefone no descanso, Margarida bate à porta e interrompa reunião do gabinete para dar a notícia. Alguns dos presentes desatam a correr escadas abaixo e o comandante Henrique Mendonça trata de garantir a segurança do primeiro-ministro.

Passa exatamente um ano e meio do golpe fascista que levou à morte do presidente Salvador Allende e que esmagou a experiência progressista que durava há mil dias no Chile. Com apenas 32 anos, o jovem comandante não está disposto a deixar que Vasco Gonçalves tenha o mesmo destino que o líder socialista chileno. Com outros membros do gabinete do primeiro-ministro, introduzem o chefe do governo numa viatura rumo ao ponto combinado em caso de situações graves. Margarida Lucas, David Lopes Ramos, assessor de imprensa, e um funcionário que servia águas e cafés nas reuniões ficaram no Palácio de São Bento, cada um com a sua metralhadora à janela enquanto esperavam o pior.

“Nós tínhamos um lugar previamente combinado que era a base naval do Alfeite, em Almada. Isso foi visto entre vários camaradas. Não podíamos deixar que este homem se transformasse num novo Allende”, recorda Henrique Mendonça. Considerada um bastião de esquerda, a Marinha albergava muitos oficiais de confiança capazes de executar o plano de extrair o primeiro-ministro revolucionário através de um submarino. Quase meio século depois, o antigo membro do gabinete de Vasco Gonçalves recorda que o condutor pôs o pé no acelerador e arrancou a toda a velocidade. “Era o motorista do Marcelo Caetano mas era muito bom”.

Este foi apenas mais um dos muitos episódios tensos de um processo revolucionário que foi constantemente torpedeado com Vasco Gonçalves à cabeça. “O general tinha sempre muita calma e
discernimento. Em todos os momentos difíceis soube encarar tudo com tranquilidade. Nunca o vi tomar nenhuma atitude precipitada”, lembra Henrique Mendonça.

Assim, o golpe é derrotado. Nessa mesma tarde, a Emissora Nacional transmite o primeiro comunicado do gabinete de Vasco Gonçalves: “A aliança entre o povo e as forças armadas demonstrará, agora como sempre, que a revolução do PREC é irreversível”.

Abrir as portas da banca ao povo

O caráter revolucionário do processo aprofunda-se e enquanto Spínola foge para a Espanha franquista, a partir donde passará a ordenar atentados contra militantes e sedes de esquerda, uma das viaturas do gabinete do primeiro-ministro arranca a toda a velocidade com o primeiro tenente oficial da Marinha, Rosário Dias, porque há informações de que a família Espírito Santo quer abandonar o país e cometer sabotagem económica com os bancos que detêm. É o prólogo de uma das mais importantes decisões do governo de Vasco Gonçalves: a nacionalização da banca.

“Levou um dos carros do gabinete que tinha o porta-bagagens cheio de armas e granadas com o objetivo de dar apoio militar à detenção de vários banqueiros com a participação de membros do sindicato”, descreve Henrique Mendonça. É o corolário de décadas em que os proprietários dos bancos foram cúmplices das políticas de Salazar e Marcelo Caetano enquanto o país morria de fome. Vasco Gonçalves, filho de Victor Gonçalves, conservador e administrador de uma casa de câmbios, abria as pesadas portas metálicas das caixas fortes aos trabalhadores e ao povo.

No dia 14 de março, o governo anuncia a nacionalização da banca. Em entrevista ao Jornal de Notícias, o então primeiro-ministro declara que é um dia histórico. “O 14 de março fica gravado na história do nosso povo como uma data que corresponde a um passo muito importante dado na sua libertação, na via do progresso, na via do país dominar os seus próprio recursos”. Questionado sobre o significado desta medida para o povo, responde que significa que “o dinheiro desse mesmo povo, depositado nos bancos, vai deixar de servir para especulações fraudulentas de uma minoria privilegiada, para operações não em benefício de um grupo minoritário, operações essas feitas sobretudo dentro dos seus próprios interesses”. Vasco Gonçalves defende que esta decisão “vai passar a servir as verdadeiras necessidades do povo, no desenvolvimento da agricultura, da indústria, do comércio interno e externo” e que o Estado passar a poder “orientar a política de crédito” e de a orientar “para aqueles setores onde ele é mais necessário, para o desenvolvimento global do nosso país”.

Carlos Carvalho era, então, membro da executiva da Intersindical e tinha a responsabilidade na futura CGTP do setor económico e das empresas que tinham sido nacionalizadas. Dias depois, visitou o primeiro-ministro em São Bento com uma delegação de organizações políticas e sociais para saudar a decisão. “O Vasco Gonçalves tinha excelentes relações com a Intersindical. Tinha um trato muito fácil. Ligava-nos frequentemente. Era extraordinária a empatia que se estabelecia com um primeiro-ministro”, afirma.

A batalha da produção

Já no 1.º de Maio de 1975, Vasco Gonçalves discursa perante centenas de milhares de trabalhadores e aponta caminhos. “Quem é o nosso inimigo principal? O nosso inimigo principal é o fascismo e a reação. Mas, no fundo, temos de discernir, neste momento, quais as brechas, por onde eles podem penetrar. Está em causa, fundamentalmente, a nossa estrutura económica. Ela está doente, doença que já vem do tempo do fascismo”, explica. Afirma que o estado da economia se agravou devido à “sabotagem económica, à crise do capitalismo e também ao próprio desenvolvimento do processo revolucionário”.

A crise económica é, então, “o obstáculo fundamental a vencer”. Com a noção de que o tempo para superar esse muro é limitado, apela ao esforço da classe trabalhadora para superar esta crise. “Ou recuperamos por nós próprios, com o nosso esforço, ou comprometeremos gravemente a marcha do nosso processo revolucionário, o futuro da nossa Pátria. Estariam à vista o regresso do fascismo, a dependência económica, a perda das liberdades”. E apela à batalha da produção. “A nossa luta é decisiva. Apelo, aqui a todos os trabalhadores, a todos os patriotas, para que se lancem na batalha da produção, de cuja vitória depende o futuro da revolução. A batalha da produção é uma etapa necessária para vencer a crise económica e criar condições para o futuro desenvolvimento da economia, numa via para o socialismo”.

A nacionalização da banca e de outros setores estratégicos da economia teve como consequência a intervenção do Estado em milhares de empresas que estavam nas mãos do setor financeiro. Uma delas foi a Sociedades Reunidas de Fabricações Metálicas que ficaria para a história com o acrónimo Sorefame. Situada na Amadora, era especializada na produção de componentes elétricos e mecânicos pesados. Tornou-se no mais importante construtor de material circulante ferroviário e ainda hoje boa parte das carruagens da CP e do metro de Lisboa carrega a histórica sigla.

Uma quinzena depois, a 16 de maio, Vasco Gonçalves chega à Amadora para participar num plenário de trabalhadores a convite dos operários. Ali, um jovem sindicalista que muitos anos mais tarde estaria à frente das lutas contra o encerramento da empresa já privatizada, assistiu à recepção entusiasta ao primeiro-ministro. Depois de falarem os representantes dos trabalhadores, falou Vasco Gonçalves: “Que mais posso eu vir aqui dizer, do que aquilo que vos disseram os vossos camaradas? Viemos aqui aprender convosco. Isto não são frases literárias o que eu estou aqui a dizer, mas isto é de facto a voz da nossa consciência e do nosso coração. Vós tendes na mão, vós e os outros trabalhadores e aqueles que estão de facto interessados em construir um Portugal democrático, um Portugal que aponte para o socialismo; vós tendes na mão o futuro da nossa pátria. O futuro da nossa pátria sois vós, vós sois a nossa pátria”.

António Tremoço recorda o empenho de Vasco Gonçalves em reforçar a necessidade de dar força à batalha da produção. “Falava em aumentar a produção e nós até fizemos horas gratuitas cuja verba depois reverteu para organizações sociais”, descreve. “Necessitamos de realismo económico. Os trabalhadores da Sorefame têm compreendido estas necessidades, e o seu nível de consciência política permite-lhes superar as dificuldades apontadas. É preciso que o seu exemplo, tal como outros exemplos existentes, alastrem a todo o país”, apelou o primeiro-ministro. “Foi inesquecível”, lembra António Tremoço.

O facto é que a Sorefame aumentou a sua capacidade produtiva e tinha, então, cerca de 4 mil trabalhadores. Para os operários, a revolução significou a melhoria das condições de vida. “Ganhávamos dois contos e quinhentos e passámos a receber quatro contos. Pela primeira vez os trabalhadores puderam comprar um carrinho, comprar coisas para a casa”, descreve.

De conspirador a primeiro-ministro

Quando Vasco Gonçalves chega a São Bento para substituir Palma Carlos a 18 de julho de 1974 não teve uma tarefa fácil. Herdou um gabinete praticamente intacto desde que Marcelo Caetano fora derrubado. Henrique Mendonça recorda que a cozinheira era mulher de um PIDE e que Vasco Gonçalves lhe assegurou que nada ia acontecer porque não era responsável pelas opções do marido que estava preso.

Muitos anos antes, em 1959, ficara ligado à chamada “Conspiração da Sé”, um plano de derrube militar de Salazar que não cumpriu os seus objetivos. Tornou-se engenheiro através da carreira militar e foi professor na Escola do Exército. Depois de combater na Guerra Colonial, aderiu ao movimento dos capitães já coronel e era então o mais alto graduado dos revoltosos. Em 19 de setembro de 1975, foi demitido do cargo de primeiro-ministro quando era o principal rosto do processo revolucionário. Um mês antes, discursava em Almada e afirmava que a revolução entrara “no seu momento decisivo quando, depois de se ter definido como socialista, pôs claramente a questão central de qualquer revolução socialista, a do acesso progressivo ao poder pelos trabalhadores”. E antecipava o que poderia vir a acontecer. “Hoje, erguem-se vozes a cantar loas à Europa — não à Europa dos trabalhadores, claro, mas à Europa dos monopólios e das sociedades multinacionais”. Para Vasco, havia quem desejasse “colocar as classes laboriosas portuguesas na situação de fogueiros da fornalha da Europa capitalista”.

A 25 de novembro, a esquerda é derrotada pela contra-revolução. Pelo meio, Vasco Gonçalves, ao lado do setor progressista do MFA, teve de enfrentar, com o apoio dos trabalhadores e do povo, um país a ferro e fogo debaixo de atentados e provocações da direita e da extrema-direita, numa salada política que ia desde o PS, PPD, CDS aos terroristas do MDLP e do ELP, com o apoio ativo de setores da Igreja, de Franco e dos Estados Unidos. Os grandes grupos económicos e financeiros não perdoam a nacionalização dos setores estratégicos da economia como não perdoam a descolonização, o salário mínimo nacional, o subsídio de desemprego, o subsídio de férias e a reforma agrária. Foi então que o povo fez do primeiro-ministro seu para cantar “Força, força, companheiro Vasco, nós seremos a muralha de aço!”

“O futuro com que sonhei não é cada vez mais saudade, é, sim, cada vez mais, necessidade imperiosa. Assim o povo o compreenda”, diria Vasco Gonçalves muitos anos depois para deixar claro que Abril não é passado. É porvir. Em 2004, então presidente da Venezuela, Hugo Chávez escreveu ao general: “A revolução de Abril vive na vitória da revolução bolivariana porque a primeira constitui um precedente do que podem realizar o povo e os seus soldados quando se unem. Dela emana um exemplo para o mundo”. O “companheiro Vasco” nasceu a 3 de maio de 1921. Faria 100 anos.


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