Anuladas as condenações, Lula da Silva pode mas ainda não avançou para uma recandidatura à presidência do Brasil. A pressão eleitoral já se faz sentir. Numa guinada repentina, Bolsonaro voltou a acreditar que a Terra é redonda. Julgada em praça pública, a parcialidade de Sérgio Moro é a mais recente pedra na engrenagem da extrema-direita. “De cara para o gol”, o país nunca esteve tão perto de rasgar o roteiro do golpe.
“Sai, sai, sai; sai que é sua Taffarel”. Como num jogo da Copa do Mundo, o Brasil continua a assistir às decisões judiciais como se de grandes penalidades se tratassem. Entre as exibições do perito na defesa dos penaltis, Cláudio Taffarel, e o caso de Lula da Silva, além do óbvio, a diferença é a taça e o fim anunciado das competições desportivas. O paralelismo faz-se do impacto da vitória ou da derrota no estado de espírito da bancada.
Depois do cartão vermelho e da investida a pés juntos que o tirou de jogo, o homem que nunca deixou de estar em primeiro lugar nas sondagens tem o caminho livre – e a ficha limpa – para voltar ao campo da corrida eleitoral. De regresso a 1994, ao frente a frente Brasil-Itália, o juiz apita, Romário marca, Taffarel não consegue evitar o pontapé de Evani, Branco não desilude, Massaro falha nas mãos do guarda-redes – “Sai que é sua Taffarel” – partiu Dunga, Baggio atira por cima. É tetra para o país do futebol: “Brásiu”, com os devidos efeitos sonoros. A julgar pelas sondagens há uma grande probabilidade de ser tetra para o torneiro mecânico que abandonou o segundo mandato com 87% de aprovação, na maior taxa a do género na história do Brasil e do mundo.
Virada
Divulgado poucos dias depois da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que anulou as condenações de Lula da Silva no âmbito da operação Lava Jato, no início de março, um inquérito do Instituto Inteligência em Pesquisa e Consultoria (IPEC) mostrava que 50% dos entrevistados votariam com certeza ou ponderariam votar em Lula da Silva, contra 44% que não o escolheriam “de jeito nenhum”.
Jair Bolsonaro aparecia com 38% no potencial de voto e com 56% na rejeição. Chutado para fora das quatro linhas, pela decisão inesperada do STF que o julgou parcial na sua conduta enquanto “super juiz” da Lava Jato, Sérgio Moro já nem aparece nas pesquisas. “Provamos que Moro jamais atuou como juiz, mas sim como um adversário pessoal e político do ex-Presidente Lula, tal como foi reconhecido maioritariamente pelos eminentes ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal”, comemorou a defesa que viu reforçados os seus argumentos na divulgação das centenas de mensagens trocadas entre o juiz e os procuradores do inquérito que conduziu Lula ao cativeiro de 580 dias.
De resto, a declaração da suspeição de Moro foi uma vitória estratégica e moral para Lula da Silva. É que se inicialmente, anulando as sentenças proferidas nos casos do tripléx do Guarujá e do sítio de Atibaia – tidos como contrapartidas dos alegados favores que, em direito penal, configuram corrupção e tráfico de influências -, o Supremo se limitou a enviar as suspeitas que recaiam sobre o ex governante à justiça do Distrito Federal, não arquivando o processo e abrindo até a possibilidade a uma nova condenação, agora, “nada do que o Moro fez poderá ser aproveitado pela Justiça do Distrito Federal”, como sintetiza o advogado e professor da Universidade de São Paulo, Mauricio Dieter, tornando “improváveis” novas penas.
De volta aos relvados, na semi-final do Campeonato do Mundo de 1998, é Moro “na cobrança” em vez do holandês Phillip Cocu. Nas redes, “ele, Taffarel” desce dos 1,83 metros de altura e é Lula da Silva no 1,68. “Brásiu”.
Efeito Lula
Com um balanço de mais de 314 mil mortes associadas à pandemia que até há pouco tempo batizava de gripezinha, o atual inquilino do Palácio da Alvorada até passou a surgir publicamente de máscara, depois da primeira aparição pública daquele que se advinha seu adversário nas urnas, em 2022.
Chamado de “terraplanista” pelo ex-Presidente, o atual fez questão de responder com um globo terrestre na secretária, no discurso semanal que promove nas redes sociais. Para já, o efeito mais visível da reviravolta no Supremo é o novo impulso na imunização e a inversão da estratégia que esgotou a capacidade das unidades de cuidados intensivos no maior país da América Latina . “A nossa arma é a vacina”, serve de lema à mudança de atitude.
Mas quem paga? 580 dias numa solitária, dois funerais – Lula foi impedido de comparecer nas cerimónias fúnebres do irmão mais velho e posteriormente do neto de 7 anos, Arthur – uma candidatura travada, a implosão da separação de poderes característica das democracias, o regresso da fome e dos coronéis. Quem paga? A detenção espetáculo, em direto, as caricaturas do presidiário em forma de balão, o desmantelamento da Petrobras. Quem paga e quanto?
Por definição, o tempo de cárcere é irremediável e irreparável para os inocentes. No tom conciliatório que sempre o arredou das opções mais revolucionárias, em oposição à paz social, Lula fez da sua questão individual, um grande torneio coletivo. “Se tem um brasileiro que tem razão de ter muitas e profundas mágoas sou eu. Mas não tenho. O sofrimento do povo brasileiro é maior do que qualquer crime que tenham cometido contra mim”. Numa capitalização do roteiro que começa na destituição da sucessora Dilma Rousseff, em 2015, o nordestino coloca-se em pé de igualdade com o país. No contra-ataque, a extrema-direita mantém a posse de bola e chuta. Cada vez mais perto, o fim da partida depende do sucesso do guarda-redes.