Afastada do centro do furacão mediático, a Venezuela deixou de ser ‘capa de revista’ num esquecimento que oscila entre o mundo de olhos postos na pandemia, a aparente eficiência do alegado ‘regime’ de Nicolás Maduro na gestão da crise sanitária e o esmorecimento da base de apoio do autoproclamado Presidente, e amplamente reconhecido pelo ocidente, Juan Guaidó.
Nem o povo norte-americano alinhou na estratégia desenhada com o apoio de Washington na ainda latente era Trump. Num compasso de espera propositado, a União Europeia não emitiu sequer um parecer oficial sobre as eleições que devolveram a maioria parlamentar ao partido dos muitos partidos que dão corpo ao PSUV de Hugo Chavéz na Assembleia Nacional. Faz depender da tomada de posse do novo Presidente dos EUA a continuidade do apoio ao homem que prometeu ‘sacar’ o chavismo de Miraflores. A transição de poder na Casa Branca acalenta, de resto, um horizonte de soluções para resolver uma das maiores crises humanitárias da América Latina.
Joe Biden já disse ao que vinha. Numa espécie de receita menos calórica da “urgência da realização de eleições livres” não ameaça com infiltrados nem intervenções militares, embora não reconheça a legitimidade dos atos eleitorais que aprofundam a Revolução Bolivariana há praticamente 22 anos.
Sem soberania, não há conversa. A ideia preside a todas as intervenções do não derrubado Nicolás Maduro.
Sem soberania, não há conversa. A ideia preside a todas as intervenções do não derrubado Nicolás Maduro. Sem que o bloqueio económico, que impede o país de aceder ao livre mercado e inclusivamente pagar os salários das delegações diplomáticas e consulares espalhadas pelo mundo, o Presidente eleito da Venezuela não vê margem para negociar. Argumenta que é um caso de soberania nacional.
Eleições livres
A julgar pelos 71% dos votos que retiraram a maioria da oposição do Parlamento venezuelano e devolveram o controlo do poder legislativo aos deputados chavistas e próximos do chavismo, Maduro não parece isolado. “Somos teimosos e não puderam nem poderão connosco”, gritou vitória como quem encerra o capítulo da transição de poder que tem falhado sucessivamente desde há já quase dois anos.
Com uma participação de pouco mais de 30%, o país foi a eleições num contexto apático. Debaixo de um bloqueio com graves consequências económicas e sociais, com uma quota parte dos eleitores emigrados e as medidas restritivas que acompanham a pandemia a impedir aglomerações e a prejudicar a fluidez das mesas de voto.
Na capital venezuelana, há três anos, Fania Rodrigues acompanhou o processo eleitoral como jornalista independente. “Não vi nenhuma irregularidade, nem tenho relatos disso. Falei com vários jornalistas que acabaram por ter a mesma percepção que eu: baixa participação em geral, pouca fluidez mas uma participação muito significativa tanto no centro de Caracas como nos mais bairros tradicionalmente mais chavistas como os bairros de Catia ou o 23 de Enero”.
De resto, na pele de emigrante brasileira, diz-nos que a maior diferença entre o processo eleitoral do país natal e o venezuelano é o facto de no maior país da América Latina o voto ser obrigatório. “A alta participação nas eleições brasileiras que chega aos 70%/80% se deve ao facto de que se você não votar, tem consequências. Você não pode tirar passaporte, não pode abrir conta no banco, uma série de coisas vinculadas ao Estado, enquanto na Venezuela o voto é facultativo, é opcional”.
Outros boicotes
Apesar do clima de boicote e dos apelos à não participação da oposição nas últimas ‘parlamentares’, a brasileira faz questão de sublinhar a diferença que passou ao lado nas apreciações dos analistas sobre o desfecho do último ato eleitoral. De facto, ao contrário do que aconteceu nas presidenciais que reelegeram Nicolás Maduro em 2018, desta vez a oposição participou em peso, parecendo, em teoria, afastada a hipótese de um novo não reconhecimento mundial dos resultados divulgados pelo Conselho Nacional Eleitoiral.
“Entre mais de 90 partidos, 15 eram do bloco chavista e os outros todos eram opositores. Dentro desse campo opositor, à direita, participaram quatro partidos considerados grandes”
“Entre mais de 90 partidos, 15 eram do bloco chavista e os outros todos eram opositores. Dentro desse campo opositor, à direita, participaram quatro partidos considerados grandes”, entre eles a coligação Acción Democrática, o El Cambio, a Avanzada Progressista e o Primero Venezuela. “Eles participaram em todo o processo. Todo o processo foi acompanhado por fiscais deles. Credenciaram até técnicos informáticos especializados para apurar e registar o processamento de votos”, esclarece Fania Rodrigues.
Assim, diz, “quando a oposição fala em fraude ela não está falando da contagem dos votos”, antes sobre a “pesada maquinaria chavista” que se entrega de corpo e alma à campanha eleitoral “chamando todo o mundo para votar”.
A título de exemplo, a jornalista falanos do ódio visceral da oposição aos chamados pontos vermelhos, em castelhano, ‘pontos rojos’. “Tem esse negócio que fica fazendo uma lista de quem votou e não votou. Não é obrigatório, mas se você é militante e quer dizer que participou, esses elementos vão tendo uma ideia do grau de participação ao longo do dia”, começa. “Aí, a oposição diz que isto é uma pressão para obrigar as pessoas a votar, embora o tal ‘ponto rojo’ nunca saiba se a pessoa votou neste ou naquele partido”.
Indiferente aos compassos de espera da comunidade internacional, o país segue o trilho definido pela Constituição bolivariana. Está marcada para 5 de janeiro a retomada da maioria da Assembleia Nacional.