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Eleições Americanas e como os EUA continuarão a ser os EUA

Como português emigrado nos Estados Unidos da América (EUA) acompanhei com todo o interesse as eleições americanas desde as primárias até à tomada de posse de Joe Biden que ocorreu no passado dia 20 de Janeiro. Era fundamental que estas eleições fossem marcadas pela derrota de um Presidente com uma visão fascizante, conservadora, racista e promotora de ódios. Como imigrante trabalhador, senti e ainda sinto na prática algumas das medidas injustas que Donald Trump procurou aplicar ao longo do seu mandato. Mas mais do que isto, vi como os sectores mais conservadores da sociedade se galvanizaram atráves de Trump e da sua presidência. O ódio e o preconceito banalizaram-se e aqueles que o promovem ganharam confiança e, com isso, força. 

Em todo o período pré-eleitoral e eleitoral, Donald Trump fez tudo para radicalizar ainda mais o que era um discurso já radical. Perante a pandemia, a palavra de ordem do ex-Presidente foi fragilizar ainda mais os mais fragilizados. Desta forma, tentou atrasar a aprovação dos estímulos económicos que ajudariam aqueles que no contexto do COVID-19 se viram sem emprego e sem uma segurança social que os pudesse proteger. Da mesma forma, Trump colocou milhões de imigrantes entre a espada e a parede por via da suspensão da atribuição ou renovação de vistos e do reforço das iniciativas de ex-patriamento por parte do ICE, os serviços responsáveis pela imigração nos EUA. Por tudo isto, deixei de me surpreender por ver sindicalistas ou aqueles envolvidos na luta dos direitos humanos empenhados em participar activamente nas eleições americanas e na sua derrota. Tornou-se compreensível. Era a batalha necessária. 

Além de tudo o que descrevi anteriormente, Trump teve a capacidade de levar a política ao plano do irracional. Disse que o COVID-19 ia desaparecer sozinho. Disse para as pessoas injectarem lixívia. Distorceu a verdade a uma velocidade quase superior àquela com que falava. Gerou e alimentou ódios. Promoveu e procurou banalizar a extrema-direita. Tudo isto foi certamente horrível de observar. Por fim, aquilo que se viu no Capitólio, no dia 6 de Janeiro, representou simplesmente o momento apoteótico da visão fascizante, anti-democrática e racista que Trump promoveu. 

Para mim, como imigrante nos EUA, a opção de quem era melhor era demasiado óbvia nestas eleições. Para todos que se posicionam na defesa da saúde e educação universal ou em prol da redução das desigualdades sociais ficou claro que Donald Trump tinha de ser derrotado. Na verdade, arrisco-me a dizer que nos últimos 30 anos, nunca dois candidatos pareceram tão diferentes numas eleições americanas. A culpa disso é exclusivamente de Donald Trump e de tudo o que defendeu e de como o defendeu. Mas isso não faz Biden diferente do que sempre foi. Altera o contexto das eleições, claro. E o contexto importa. Mas por favor, não esqueçamos que Biden tem responsabilidades na política americana há quase quatro décadas. Esteve envolvido em Administrações desde o tempo de Clinton e antes disso já era um senador influente. Donald Trump defender tudo o que é repudiável não altera a natureza de Joe Biden e tudo aquilo que ele tem defendido. Mas a derrota de Trump não garante, de forma alguma, que haja uma política orientada para defender os mais fracos. Para isso, também a política defendida por Joe Biden precisa de ser derrotada. Deixem-me ser um pouco mais claro. Mesmo com Joe Biden, o cidadão médio americano continuará muito longe de ter acesso aos direitos que na maioria das constituições dos países europeus estão garantidos universalmente e mais longe ainda do que os progressistas do mundo continuam a reinvidicar. 

Sei que seguramente não pareceu isso a muitos dos que acompanharam as eleições e há muitos leitores a torcer o nariz neste momento. O espectáculo proporcionado pelo modelo presidencialista americano e que faz os partidos reféns das suas vedetas tem tudo para atriar multidões dentro dos EUA mas também para o Resto do Mundo. É também um espectáculo, de cor, publicidade, acontecimentos provocados e outros acidentais. Os órgãos de comunicação tomam partido. Ver um ou outro canal televisivo é como ver uma televisão afiliada com um partido. Toda a gente tem de ter uma posição. Não há objectividade. Com isto tudo, o espectáculo torna-se envolvente e transborda fronteiras. O mundo global tem a capacidade de tornar próximas coisas que acontecem do outro lado do mundo. Apenas um àparte para dizer que não me parece que seja assim com tudo. Fico com a impressão que se determinado acontecimento sucede nos EUA ou na Europa dos Ricos (Paris, Londres, Berlim) a atenção dada em Portugal é infinitamente proporcional do que se o mesmo fenómeno se passasse num qualquer país africano ou asiático. Acabamos por nos sentir familiarizados com coisas que acontecem sem nos apercebermos que o que chega até nós é sempre uma visão simplificada da realidade. 

Foi neste contexto que me apercebi que alguns dos meus conhecidos e amigos em Portugal acompanharam esta eleição com uma esperança redobrada que só consigo explicar se acreditar que eles partilham da convicção que um ou outro resultado ia influenciar a sua vida. Vi pessoas e órgãos de comunicação a dar mais atenção a estas eleições do que a acontecimentos relevantes em Portugal e isso deixou-me confuso. Deixem-me ser mais claro. É minha convicção que se para um americano de rendimento médio, trabalhador, latino ou negro, é diferente que Joe Biden tenha ganho, também acredito que para um trabalhador em Portugal isso não fará grande diferença. Os EUA já provaram que a sua natureza intervencionista no mundo não depende exactamente de quem é o seu Presidente. Se é verdade que os discursos de Obama podem ser comoventes e que o Obamacare revolucionou o acesso à saúde nos EUA, também é verdade que as acções na Líbia ou no Médio Oriente não podem ser esquecidas. Claro que não é indiferente que o Presidente dos EUA tenha uma mensagem mais pacificadora ou uma outra mais incendiária, mas o que seria mesmo diferente e radicalmente novo era que houvesse um Presidente dos EUA empenhado em alterar o posicionamento que este país tem tido em termos geo-políticos e em termos económicos. Um Presidente que fosse capaz de ter uma visão menos imperial e mais solidária. Que levantasse o embargo a Cuba e que em vez de balas e mísseis enviasse comida e médicos. Esse Presidente não é seguramente Joe Biden e para a esquerda americana é mais que compreensível que com Trump e Biden há sempre muita luta a fazer. Quanto ao resto do mundo, esse tem que entender que entre um Presidente mais rude ou outro mais fofinho, os EUA continuarão a ser a sede das maiores multi-nacionais mundiais e terão o objectivo de aprofundar a dominação económica e de explorar de forma insustentável os recursos mundiais.

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