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Guerra na Ucrânia – Quo Vadis

Completou-se, em 24 de fevereiro, um ano sobre a invasão russa da Ucrânia, abrindo um novo capítulo num conflito iniciado oito anos antes, na sequência dos acontecimentos da Praça Maidan, que levaram à deposição do presidente Yanukovich e ao colapso do poder político em Kiev.

O Acordo de Minsk, segundo declarações de Merkel e Hollande, teve como desígnio ganhar tempo para capacitar o exército ucraniano.

A génese do conflito é, no entanto, anterior a estes acontecimentos. Remonta às contradições de que enferma a criação do Estado ucraniano, uma amálgama de territórios e povos com histórias e culturas distintas, que as circunstâncias geopolíticas de duas guerras mundiais ditaram.

Na sequência dos acontecimentos da Praça Maidan, a Rússia anexou a península da Crimeia e as populações maioritariamente russófonas do Sul da Ucrânia pegaram em armas, registando-se na região do Donbass (Donetsk e Lugansk) confrontos armados entre grupos de nacionalistas. A mediação da França, da Alemanha e da Rússia permitiu alcançar um acordo de cessar-fogo, assinado em 24 de fevereiro de 2015 em Minsk, com um conjunto de cláusulas de segurança destinadas a garantir a paz.

A monitorização do Acordo de Minsk ficou a cargo de uma missão da OSCE [Organização para a Segurança e Cooperação na Europa], com vista à normalização da situação. No entanto, os sete anos que se seguiram saldaram-se pela não aplicação do acordo e pela continuação dos combates, causando mais de 35.000 feridos e 13.000 mortos, dos quais 3.000 civis, para além de mais de dois milhões de refugiados e deslocados.

O Acordo de Minsk, segundo declarações recentes de Merkel e Hollande, então chanceler da Alemanha e presidente da França, teve como verdadeiro desígnio ganhar o tempo necessário para capacitar o exército ucraniano, com vista a serem retomados os combates. Não foi apenas a Ucrânia que se preparou para esta guerra. O lado russo, após a intervenção na Crimeia, intensificou o processo de transformação das suas forças armadas iniciado após o conflito com a Geórgia em 2008, acelerando a modernização do seu aparelho militar, em particular no plano do armamento estratégico. De salientar que a Rússia tomou a dianteira no desenvolvimento dos mísseis hipersónicos e adquiriu a paridade no domínio das armas de precisão.

Em dezembro de 2021, o Kremlin enviou a Washington e à NATO um documento com uma proposta de revisão da ordem de segurança na Europa. Consubstancia, na realidade, um ultimato por parte de uma Federação Russa mais assertiva e predisposta a desafiar a hegemonia norte-americana.

A invasão russa, justificada por este país como um ataque preventivo destinado a proteger as populações do Donbass, assentou no pressuposto de que a Ucrânia colapsaria, ou seria rapidamente vencida no campo de batalha. A primeira condição foi contrariada pela vontade de resistir do exército ucraniano, obrigando os russos a concentrarem as operações no Donbass, onde o terreno lhes é mais favorável. A derrota militar do exército ucraniano também não se verificou como os russos previam, mercê do crescente apoio do ocidente nas várias dimensões do conflito.

Esse envolvimento é hoje indesmentível, da logística ao planeamento, da intelligence ao recurso à constelação de satélites militares e civis para o comando e controlo das operações, à formação e treino do exército, passando pela validação dos objetivos e operação de meios estratégicos. Acresce uma miríade de pessoal presente no teatro com estatuto de conselheiros, contractors, meros mercenários ou integrando unidades constituídas que atuam no país de forma encoberta.

Um conflito é um sistema complexo e adaptativo, um jogo de parada-resposta que implica sempre o ajustamento das formas como os beligerantes pretendem atingir os objetivos definidos pela política, tendo em consideração os meios disponíveis. É em torno da conjugação destes três fatores (fins-formas-meios) que é efetuado o desenho da estratégia.

A definição dos objetivos tem em conta a natureza dos interesses em disputa, condicionando o grau de empenhamento das partes e o nível de esforço (sacrifícios) admissível na condução do conflito, determinando assim a sua natureza. Assumirá um caráter limitado quando estiverem em disputa interesses importantes, ou a forma de conflito total quando os interesses em causa forem vitais.

O conflito em apreço consubstancia interesses desta natureza para a Ucrânia, empenhada no restabelecimento da soberania no seu território. Para a Federação Russa, iniciou-se como um conflito limitado, centrado em pressupostos políticos que a evolução dos acontecimentos demonstrou estarem errados, nomeadamente quanto ao grau de interferência do ocidente no curso das operações.

O ocidente, protagonizado pelo eixo EUA-NATO-EU, tem vindo a garantir um apoio crescente à Ucrânia. Obedece ao um racional difícil de descodificar, assente no objetivo declarado de infringir uma derrota estratégica à Rússia e no princípio de que a solução do conflito deverá assentar na via militar, declarando o apoio incondicional à Ucrânia durante o tempo que for necessário. Quando a derrota estratégica tem indexada uma mudança de regime, vem à memória um cenário de recidiva do colapso da União Soviética.

Tendo em conta que o opositor é uma potência nuclear, que dispõe de um dos exércitos mais poderosos e que nas outras frentes do conflito (diplomática, económica, informacional) não aparenta estar a ser derrotado, é legítimo perguntar se é expectável que venha a sê-lo militarmente, quando o diferencial de potencial estratégico pende inequivocamente em favor dos russos.

Os acontecimentos no terreno, de que a carnificina dos combates em Bakhmut é exemplo, coloca-nos perante o dilema de saber até onde o ocidente admite que o conflito possa escalar? Qual é o plano B se os russos destruírem o exército ucraniano na contraofensiva da próxima primavera, à semelhança do que fizeram aos dois anteriores que o ocidente armou, equipou e treinou? Que entendimento tem o ocidente sobre este conflito para estar a ser considerado pelos russos como uma ameaça existencial, justificativa do recurso a armas nucleares como, aliás, têm reiteradamente avisado? O que é preciso para que o ocidente comece a levar a sério Vladimir Putin?

E a questão de 1 milhão de dólares é saber se vai ou não haver tropas da NATO na Ucrânia. E qual a posição do governo português quando, ao abrigo da solidariedade transatlântica, nos vierem pedir para enviar soldados portugueses para combater e morrer na Ucrânia. Tendo em consideração que neste conflito já todas as partes “passaram o Rubicão”, talvez seja este o momento de exigirmos aos decisores políticos que nos elucidem sobre a natureza dos interesses do nosso país nesta guerra. Até porque pode ser a última.

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