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Donbass. Dez anos de guerra

Prestes a atingir os 10 anos, a guerra no Donbass não dá sinais de terminar. Do lado controlado pelas forças russas, a Ucrânia provoca vítimas entre os civis praticamente todos os dias.

Ouvem-se gritos desesperados. Há feridos por toda a parte. Gente que se tenta arrastar entre os destroços e que pede ajuda. São as imagens brutais que nos mostra Liudmila através do telemóvel. “Esta sou eu, ali deitada. Aquele rasto de sangue foi de quando a Maria arrastou o marido lá para fora”. No dia 21 de janeiro deste ano, um bombardeamento das forças ucranianas sobre o mercado do bairro de Tekstilshik provocou o mais mortal dos massacres na cidade de Donetsk. Como resultado do ataque, 27 civis perderam a vida e 25 ficaram feridos. É Liudmila que explica à Voz do Operário o que aconteceu, sentada numa cama no hospital de traumatologia de Donetsk. Nesse dia, estava dentro da sua loja de acessórios para telemóveis. “As pessoas que nos trouxeram para o hospital são civis”, recorda.

“Estávamos a trabalhar. O primeiro projétil atingiu o outro lado da rua e, cinco minutos depois, atingiu o sítio onde trabalho, literalmente a dois passos de mim. Sobrevivemos os três. Eu, a minha colega, que acabou de ter alta, mas perdeu uma perna, e o marido. Os outros estavam mortos. Éramos como uma família”, descreve. “Tudo o que recordo é que fui atirada por uma onda expansiva pelo ar e caí. Quando acordei, senti o cheiro a queimado e doía-me a perna. Fiquei com uma fratura exposta e deixei de a sentir”. Apoiada num andarilho ortopédico, explica que está há mais de um mês e meio no hospital. Foram já quatro operações. 

Ali ao lado, outras duas mulheres, também pacientes, abanam a cabeça indignadas com tudo o que aconteceu a Liudmila e aos restantes civis. Juntam-se à conversa. “Se a Ucrânia se quer juntar à Europa, que se junte à Europa e nos deixe em paz. E pronto. Nós não fomos ter com eles, eles é que vieram ter connosco. Eles matam os nossos filhos. Por amor de Deus! Eles que nos deixem em paz”, exige uma delas. “Nós propusemos isso desde o início. Que deixassem o Donbass em paz. Eles ignoraram-nos. Gostaríamos que os ucranianos nos tratassem normalmente. Muitas crianças estão a sofrer. A Ucrânia bombardeia civis”, denuncia a outra.

Para Liudmila, não há muito mais a dizer. Ironicamente, diz que agradece a Zelenski: “Muito obrigada. Tenho uma amiga de 28 anos que perdeu a perna. Que corra tudo bem para os que fornecem essas armas”. “Que Deus os castigue”, responde outra mulher. “Entregam armas para nos matar”. Liudmila ergue o punho cerrado e repete em castelhano a popular consigna antifascista eternizada na guerra civil de Espanha: “No pasarán”.

O hospital está cheio de civis feridos. Também crianças. O vice-diretor, Vadim Onopryenko, tem pouco tempo para entrevistas. Daqui a pouco tem uma cirurgia programada. “A situação é sempre difícil. A cidade continua a ser bombardeada. Quase todos os dias nos são trazidos civis feridos”, descreve. “Como já disse uma vez, a vida em Donetsk é como uma roleta. Se acordamos e não fomos atingidos por um bombardeamento, temos sorte. Se estivermos a conduzir para o trabalho e não tivermos sido atingidos por algum ataque na estrada, temos sorte. E se não formos atingidos durante o dia de trabalho, também temos sorte. É a chamada roleta de Donetsk”. Vadim Onopryenko recorda que os drones ucranianos fazem agora parte do dia a dia. São usados para atacar civis.

Este é o hospital que mais feridos tratou durante esta guerra que dura há uma década. “Na realidade, a guerra é sujidade, é sangue, são infeções. A pior coisa da vida é a guerra. Morrem civis, crianças, idosos… São pessoas que não têm nada a ver com a guerra. A única culpa destas pessoas é o facto de viverem aqui. Os ferimentos causados por minas são muito complexos devido ao seu carácter traumático. Estes ferimentos levam sempre a complicações porque as feridas estão muito contaminadas. A cirurgia militar é muito diferente da cirurgia em tempo de paz. A abordagem a estes doentes é completamente diferente. Aprendemos em 2014, quando nos começaram a trazer feridos. Não tivemos tempo para cursos. O nosso hospital tratou o maior número de vítimas de bombardeamentos.

Enquanto decorrem as eleições presidenciais russas nos territórios anexados, chega a trágica notícia da morte de três irmãos de dois, nove e 14 anos no bairro de Petrovsky, também em Donetsk. Um ataque ucraniano durante a noite destruiu a casa por completo. De manhã, ainda há fumo a sair dos destroços. A mãe, a única sobrevivente, era já viúva, depois de o marido ter morrido em combate em janeiro do ano passado. Esta história não abriu qualquer telejornal porque aconteceu no lado controlado pela Rússia. São estas as vítimas anónimas deste conflito e vivem com cicatrizes abertas numa região que está em guerra há demasiados anos.

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