Internacional

Racismo

COVID-19, desigualdades e racismo nos EUA (e também por cá)

Os focos noticiosos têm estado centrados nos Estados Unidos da América pelos últimos dias. Nada que surpreenda quem conhece a sociedade americana. A atual situação não é o mero reflexo do agudizar de importantes disparidades de natureza económica e social que têm empurrado muitos sectores da população americana para situações de pobreza extrema e desespero. Nos últimos dias porém sucederam-se episódios que tornaram inevitável a agitação e o grito de revolta por uma mudança.

Em primeiro lugar, apesar de ser um dos países do mundo com maior Produto Interno Bruto per capita, a situação em termos de prestação de serviços públicos não reflete isso. Pelo contrário. Por exemplo, a saúde está totalmente assente na lógica privada. Como consequência, perante a ameaça de pandemia, as entidades públicas revelaram, em geral, uma total incapacidade de dar resposta de forma coordenada e universal. Isto deixou a vida de grande parte dos americanos entregues a si mesmos (entenda- se, à sua capacidade financeira). Para se ter uma ideia, há cerca de dois meses um órgão de comunicação social americano noticiava que um doente cujo tratamento de um caso de COVID-19 que implicasse internamento teria de pagar em média qualquer coisa como 37.500 dólares (33 mil euros). Isso mesmo. Esta é a primeira falha gigante de um sistema que muitos teimam em tentar replicar em Portugal.

A par disto, as medidas sanitárias adoptadas no decorrer da crise do COVID-19 fizeram o desemprego disparar no ritmo mais elevado desde que há registo. Assim, em oito semanas, 40 milhões de pessoas ficaram desemprega- das. Isto é 10 vezes mais que o número de desempregados que existia do início de 2020. A agravar tudo isto, em geral estes trabalhadores não têm acesso a qualquer apoio enquanto estão desempregados. Ora, isto veio limitar ainda mais o acesso de pessoas aos dispendiosos tratamentos de saúde, num quadro de pandemia, agravando uma realidade já de si dramática. Por isso é sem surpresa que estudos têm concluído que o COVID-19 afectará muito mais, em termos relativos, a população pobre e marginalizada. Este é um dos custos de ter o lucro como objectivo primordial.

Foi então no quadro desta situação social, já por si devastadora, que acontecem três episódios que não podem ser considerados de forma isolada. Primeiro, no dia 23 de Fevereiro, Ahmaud Arbery é “perseguido como um animal e morto” – nas palavras da sua mãe – enquanto faz jogging no seu bairro da cidade de Brunswick, Geórgia, por um pai e um filho declaradamente racistas. Depois, acontece o caso Amy vs. Christian Cooper em Central Park, Nova Iorque. Neste caso, uma mulher faz uso da sua condição de branca para ligar para a polícia a descrever “que estava a ser ameaçada por um afro-americano” quando não é nada disso que se vê nas imagens da gravação. Para a sociedade americana este episódio foi mais um de exemplo de racismo estrutural em que alguém sabe que vai ser beneficiado por ter determinada cor de pele. Por fim, no dia 25 de Maio, George Floyd, um cidadão negro, é morto, barbaramente, numa intervenção policial em que ele não oferece qualquer tipo de resistência. Os seus gritos de dor e desespero enquanto chama pela sua mãe e o ar lhe falta ecoaram como mais um exemplo de brutalidade policial.

O momento atual não é caracterizado só pelo COVID ou por estes três casos relatados. Muito menos está apenas em causa a morte de George Floyd. Está em causa uma sociedade que gera lucros como nenhuma outra, à custa daquilo que retira a uma maioria de trabalhadores pobres e marginalizados, gerando desigualdades gritantes. Dito de outra forma, a compensação que é dada a estes trabalhadores negros, latinos, brancos, asiáticos é um salário miserável, a ausência total de um Estado que os defenda em condições de fragilidade e de doença e ainda o bastão policial que persegue alguns deles de forma discriminada. Em suma, é neste contexto, em que são necessários cada vez mais pobres americanos para sustentar cada multimilionário, que se criou o caldo para que milhões de americanos saíssem para a rua em pro- testo. O momento atual americano mostra-nos quão discriminatória e injusta é uma sociedade que defende unicamente o lucro e que nega valores universais como solidariedade e justiça social, em nome da prevalência do direito de propriedade de um punhado cada vez menor de multimilionários.

No entanto, importa sublinhar que seria um erro pensar que discriminação, desigualdade e racismo são exclusivos da sociedade americana. A sociedade americana neoliberal representa em larga medida aquilo que muitas forças políticas, de forma mais ou menos encapotada, pretendem implementar em Portugal. De facto, do ponto de vista económico e social, a privatização dos serviços de saúde e a falta de apoios sociais podem agravar-se significativamente por via de uma União Europeia que insiste em ser motor de concentração de riqueza através da sistemática imposição de austeridade nos povos do Sul. Por outro lado, mesmo do ponto de vista racial, os atos hediondos contra Floyd e Arbery têm paralelo em Portugal nos casos de Cláudia Simões e Alcindo Monteiro. Pior do que isso. Algum de nós sabe o nome do cidadão ucraniano alegadamente morto pelos agentes do SEF? Gritámos por esse nome? Além destes casos mais graves podíamos olhar para as milhares de denúncias racistas que em geral caem em saco roto. De facto, ninguém pode afirmar de ânimo leve que estamos melhor que os EUA quando nos últimos 10 anos, em Portugal, nenhum polícia foi condenado por racismo pelas entidades competentes apesar das inúmeras queixas.

Então qual é a solução? Façamos do mal que vemos nos outros, o momento para reflectir sobre os problemas que também temos. Isso será o contributo inestimável para corrigirmos as injustiças da nossa sociedade. Em muitos casos, somos rápidos e astutos, quer individual quer colectivamente, a identificar os erros nos outros. É então o momento de reconhecer o mal que existe em nós próprios. E de nos unirmos para fazer do nosso futuro um lugar melhor para se viver.

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