Internacional

Palestina

Os dias em que a morte caiu do céu

O reacender mediático da limpeza étnica nos Territórios Ocupados e a continuação do genocídio perpetrado por Israel, reacendeu o debate em torno da questão da Palestina. O drama é que, após o cessar-fogo anunciado, assim que as imagens da Cúpula de Ferro deixarem de atrair as atenções das edições internacionais da imprensa ocidental, o cenário será ainda pior do que era antes. Nem a destruição do edifício onde se encontravam os escritórios da Associated Press e da Al-Jazeera parecem ser suficientes para aguçar algum sentido crítico entre alguns jornalistas. O saldo, desta vez, traduz-se em 231 mortos, 61 crianças.

Ignição em Sheik Jarrah

A resistência aos desalojamentos no bairro palestiniano de Sheik Jarrah, para que as residências possam ser ocupadas por israelitas, estiveram na origem do massacre que ocorreu durante onze dias na Faixa de Gaza, um campo de refugiados a céu aberto, que é alvo fácil para um dos exércitos mais desenvolvidos do Mundo. Estas operações de despejo fazem parte de uma limpeza étnica que acontece fora dos holofotes daquilo a que a imprensa ocidental gosta de chamar “comunidade internacional”, por mais desumano que seja. Porém, tenhamos noção de quem é essa “comunidade internacional”: trata-se da UE, dos EUA, Japão, Coreia do Sul e dos países brancos do hemisfério sul, Austrália e Nova Zelândia. 

É o capitalismo, estúpido!

O posicionamento dos países da UE, incluindo o governo de Portugal, de total alinhamento com os EUA, não se explica por qualquer análise humanitária ou preocupação com os israelitas que defendem o direito do povo palestiniano à autodeterminação, e que sofrem retaliações por isso. O complexo industrial militar dos EUA e da UE precisa de um Médio Oriente instável. Dele dependem muitas das inovações militares conseguidas ao longo dos anos, como o uso generalizado de ataques por drones militares, e o próprio conceito da Cúpula de Ferro, financiado pelos EUA, que cobre o espaço aéreo de Israel. Entre 2009 e 2020, 70% das despesas israelitas com armamento foram para os EUA, de acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo. Já a Campanha Contra o Comércio de Armas avalia em 4,9 mil milhões de dólares a compra de armamento aos EUA por parte de Israel, entre 2013 e 2017. Convém relembrar que, enquanto apelava à contenção do que designa por “conflito”, o presidente Joe Biden fechava um negócio de vendas de armas no valor de 735 milhões de dólares, avançou o Washington Post. O democrata tem ainda à espera uma aprovação do Congresso que prevê, até 2028, um financiamento militar a Israel na ordem dos 34,2 mil milhões de dólares. Por isso, não é de estranhar que tenha sido impossível chegar a uma declaração conjunta no Conselho de Segurança da ONU, reunido de emergência, uma vez que contou sempre com o veto dos estado-unidenses.

Os direitos humanos e a UE

Que na UE, os direitos humanos pelos quais pugna variam de latitudes, já sabemos, mas é preciso ter muita ginástica para augurar-se na vanguarda quando, simultaneamente, Alemanha e Itália são responsáveis por uma parte substancial do que sobra dos 30% de comércio de armamento israelita. Os apelos tardios à contenção, forçados por uma opinião pública – diferente de opinião publicada – cada vez mais farta de imagens de crianças mortas às mãos de genocidas, obrigou ao apelo à “cessação do conflito por ambas as partes”, declaração vaga e vazia que já só convence quem quer ser convencido. Desta vez, as redes sociais, tantas vezes demonizadas, não permitiram que o massacre ficasse nos rodapés dos espaços de informação e saltou para os assuntos mais comentados, em todo o mundo, durante os onze dias em que assistimos às imagens de horror. 

As costas largas do Hamas

O direito de autodefesa de qualquer Estado está garantido nas normas internacionais, mas há a questão da proporcionalidade na resposta a uma agressão por outro Estado e o respeito pelo Direito Internacional. Israel não cumpre qualquer dos dois, até porque não reconhece à Palestina o estatuto de Estado. Depois de ter ajudado a implantar o Hamas como interlocutor na Faixa de Gaza, uma estratégia que serviu para retirar autoridade à Organização de Libertação da Palestina e à Frente Popular de Libertação da Palestina, Israel recorre ao lançamento de rockets por parte daquela organização para justificar o bombardeamento de fábricas, escolas e, desta vez, nem o único centro de testagem à Covid-19 em Gaza escapou. Pode parecer estranho, pela forma como a informação nos chega, mas a Faixa de Gaza é uma área com uma densidade populacional de cerca de 5.000 pessoas por km². Para termos uma ideia, Portugal tem 115 pessoas por km². Os bombardeamentos pararam, mas o assédio diário aos palestinianos continuou no dia seguinte, com operações policiais na mesquita de Al-Aqsa. A morte caiu do céu e veio à terra.

O súbito encanto da academia

Desta vez, a desculpa mais usada para não condenar o Estado apartheid de Israel foi a de que “não sabemos o suficiente” sobre a questão, que tem um contexto histórico complexo. Obviamente, podemos usar este argumento em qualquer discussão que decidamos não ter. Na verdade, este só surgiu agora porque, conforme referido, há uma viragem clara na opinião pública, que parece começar a não aceitar a narrativa mediática oficial. Neste capítulo, fica um apontamento em relação à SIC. Já há alguns anos que é difícil perceber se é aquele canal que tem um correspondente em Israel, ou se é Israel que tem um correspondente na SIC. Curiosamente, parece não ser necessário ter qualquer conhecimento histórico para debitar certezas sobre a realidade política da América Latina, por exemplo, do Leste da Europa ou da Ásia. Para isso, parece que estamos todos alegremente habilitados, como se estes fossem filhos de um deus menor, desmerecedores do nosso profundo conhecimento sobre tudo. Condenar o massacre constante de palestinianos às mãos da ocupação israelita não é uma questão académica. É decência.

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