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Colômbia

Eleitores escolhem Petro e desafiam narco-regime

Em 2012, o Ministério Público colombiano anunciou a reabertura de uma investigação sobre o financiamento a grupos paramilitares pela Chiquita International Brands. Em 1990, a empresa norte-americana tinha decidido fazer aquilo a que agora se chama rebranding.

A vitória de Gustavo Petro e Francia Márquez é o resultado do cansaço com políticas conservadoras.

Para reciclar o passado, apagou da sua identidade um nome que ainda hoje é visto como maldito na história de vários países da América Latina: United Fruit Company. A obra maestra de Gabriel García Márquez, Cem Anos de Solidão, internacionalizou um dos episódios mais sangrentos da Colômbia quando, em 1928, 28 mil trabalhadores das plantações de bananas desta companhia norte-americana decidiram iniciar a mais longa greve alguma vez feita naquele país até ao momento. No dia 5 de dezembro, o governo de Miguel Abadía Méndez mandou avançar as tropas sobre os grevistas e nos dias seguintes o próprio embaixador dos Estados Unidos admitia haver cerca de mil trabalhadores assassinados.

Este pequeno perfil histórico de uma única empresa estrangeira na Colômbia mostra o grau de violência num país em que os grandes grupos económicos e financeiros nunca deixaram de recorrer à força para defender o seu modelo de sociedade. Em 1958, foi assassinado Jorge Eliécer Gaitán, candidato presidencial com um programa democrático e popular, e o mais bem posicionado para ganhar as eleições. Nesse mesmo dia, a população protagonizou uma revolta que levou a uma guerra civil que acabou por forjar a geração que fundou históricas guerrilhas como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e o Exército de Libertação Nacional (ELN).

A utilização da violência política como resposta só se pode entender se se perceber que na Colômbia as oposições foram sempre alvo de extermínio por parte das elites e que esse facto não é uma triste memória de um passado longínquo mas uma realidade que todavia persiste. Há um ano, durante os protestos que pararam o país e que geraram condições para a inédita vitória de um candidato progressista, apareceram pedaços de corpos de opositores em várias partes do país e alguns representantes políticos e sindicais anunciaram o exílio devido a ameaças de morte.

A última metade do século XX e as primeiras décadas deste século mostram que a violência estatal e paramilitar está absolutamente normalizada. Segundo o El País, 8 mil colombianos foram assassinados durante os governos de Álvaro Uribe, entre 2002 e 2010. Os dados são esmagadores se comparados com o número de assassinados e desaparecidos durante a ditadura de Pinochet. No Chile, em 17 anos, foram executadas 3200 pessoas.

Se a Colômbia é vista por grande parte dos países do mundo como tendo um regime democrático, entre 1988 e 1990, só do partido União Patriótica, foram assassinados dois candidatos presidenciais, 5 deputados, 11 deputados regionais, 8 presidentes de câmara e 109 vereadores. No total, 4153 militantes dessa organização foram assassinados. Muitos optaram pelo exílio e outros por pegar em armas e juntar-se às diferentes guerrilhas.

Vencer o terror estatal

A vitória da candidatura presidencial de Gustavo Petro e Francia Márquez é o resultado do cansaço generalizado com as políticas conservadoras das últimas décadas num país considerado como o maior aliado dos Estados Unidos no continente. Com um dos mais elevados índices de desigualdades sociais, a Colômbia enfrentou no último ciclo político encabeçado por Iván Duque, pupilo de Álvaro Uribe, um recrudescimento da violência. A falta de vontade em cumprir os acordos de paz assinados entre as FARC e o governo foi, desde logo, um sinal do que estava para vir. Em apenas cinco anos, entre 2016 e 2021, pelo menos 904 líderes sociais e 276 ex-combatentes das FARC foram assassinados, de acordo com um relatório da Jurisdição Especial para a Paz (JEP).

A falta de perspectivas dentro de um regime com profundas ligações ao narcotráfico e que serve, como em 1928, de tropa de choque dos grandes grupos económicos e financeiros, espoletou uma onda de protestos e mobilizações em todo o país. Para além do contexto continental em que estas mobilizações se repetiram em vários países, que se traduziram em mudanças eleitorais (Chile, Peru e Bolívia) nalguns deles, há vastos territórios dentro da própria Colômbia onde o Estado não existe. As populações vivem abandonadas, desligadas do poder central, muitas vezes ameaçadas por grupos armados, o que explica os números impressionantes de deslocados por causa da guerra. Apesar do acordo de paz, a Colômbia continuava a ser, em 2019, o país do mundo com mais deslocados internos. Em 2017, eram 7,7 milhões de pessoas, de acordo com um relatório da Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR). Mesmo com a violenta guerra na Síria que provocou uma crise de refugiados internos e externos, a Colômbia encabeçou sempre esta lista. Em 2018, aos 7,7 milhões de pessoas somaram-se mais 30.500 deslocados.

O difícil repto de governar a Colômbia

Em 2019, o New York Times revelava que o responsável pelo exército da Colômbia, Nicacio Martínez Espinel, ordenara às suas tropas que duplicassem o número de guerrilheiros e criminosos mortos e capturados, repetindo a estratégia de meados da década de 2000 daquilo que ficou conhecido como falsos positivos. Então, o escândalo rebentou quando vários familiares denunciaram que militares tinham assassinado civis para apresentá-los como guerrilheiros caídos em combate. Descobriu-se então que as forças armadas premiavam os soldados que mais baixas conseguissem em combate. Vários relatos da época na imprensa denunciaram que muitos deles eram jovens de bairros pobres aliciados para supostas entrevistas de emprego das quais não voltavam. Os corpos apareciam noutras zonas da Colômbia como sendo guerrilheiros abatidos.

A conquista eleitoral por parte de Gustavo Petro, com o apoio da esmagadora maioria das forças de esquerda, representa um avanço inédito num país que ainda precisa percorrer um longo caminho para se democratizar. Independente das análises de fundo sobre o programa eleitoral e o menor ou maior grau de compromisso do ex-guerrilheiro e autarca de Bogotá com os trabalhadores e a população colombiana, esta vitória não pode ser lida fora deste contexto. Vai ser, aliás, um desafio para o binómio Petro-Márquez governar com um Estado profundamente infiltrado por forças reaccionárias e com ligações ao paramilitarismo e ao narcotráfico.

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