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Estados Unidos

A democracia enterra-se em urnas

Ao cabo de largos anos de internamento num hospício soviético, o paciente parecia curado e pronto para ter alta: compreendera finalmente que era um ser humano e não um grão de milho que podia, a qualquer instante, ser tragado pela fauce rostrada de uma galinha gigante. Mas poucas horas volvidas regressara, aos murros contra as portas, o efémero caso de sucesso da psiquiatria socialista, suplicando que o deixassem entrar, que o perseguia novamente a terrível galinha gigante. Questionado pelos médicos sobre se retornara ao delírio de ser um grão de milho, o paciente asseverou que sabia perfeitamente que era um ser humano. O problema, explicou «é que a galinha gigante não sabe isso».

A velha anedota soviética pode ajudar a desemaranhar o nó em que, no momento mais crítico da sua história centenária, se acha enredada a bicentenária democracia burguesa estado-unidense: Biden bem pode descansar a América garantindo-lhe que ela é uma democracia, porque ela até acredita. O problema é que Trump, as forças armadas, 300 milícias fascistas armadas até aos dentes e metade dos capitalistas mais ricos e poderosos do mundo, não sabem isso. Leia-se grão de milho, ou democracia, onde se pode ler nêspera e galinha gigante no lugar de velha e podemos chamar o Mário Henrique Leiria, que de crises democráticas tinha vasta experiência, para dar-nos a moral da história: «Uma nêspera / estava na cama / deitada / muito calada / a ver / o que acontecia / chegou a Velha / e disse / olha uma nêspera / e zás comeu-a / é o que acontece / às nêsperas / que ficam deitadas / caladas / a esperar / o que acontece».

O golpe de Estado que Trump reserva para as eleições de 3 de Novembro desenrola-se publicamente, diante dos olhos serenos e impávidos do Partido Democrata (PD) sem que haja qualquer tentativa séria de o travar. No dia 27 de Outubro, prestou juramento a nova juíza do Supremo Tribunal, Amy Coney Barrett, cooptação da confiança de Trump que veio garantir uma maioria qualificada de extrema-direita no único órgão judicial que, caso os republicanos impugnem os resultados eleitorais, tem o poder de mandar parar de contar os votos, como aconteceu em 2000, de adiar ou impedir uma tomada de posse e até de decidir unilateralmente quem é o vencedor. A arquitectura regimental do Senado dos EUA permitia que, mesmo em minoria, os Democratas impedissem, ou pelo menos atrasassem até às eleições, a confirmação de Barrett. Mas não o fizeram.

Em entrevista ao Politico, a congressista democrata Elissa Slotkin, antiga agente da CIA e ex-oficial do Pentágono, explicou que os democratas estão conscientes do risco de um golpe, mas querem mantê-lo longe da comunicação social e das ruas, passando a estratégia por contactar, um a um, generais das forças armadas e chefes dos serviços secretos.

Entretanto, Trump, que está farto de ameaçar que não reconhecerá os resultados caso perca, deu luz verde às milícias fascistas para levarem armas para as assembleias de voto e intimidarem os eleitores. Em vários Estados, como no Michigan e na Nova Hampshire, a polícia já avisou que não irá interferir. Mais uma vez, os democratas podiam ter mobilizado a sociedade estado-unidense para rejeitar, nas ruas, o golpe, seja ele eleitoral, judicial, palaciano ou militar, mas optaram por manter a sua débil resistência na esfera estritamente institucional.

No mesmo dia em que Barrett prestou juramento, o Supremo recusou a contagem antecipada dos votos por correspondência, maioritariamente democratas, em quatro Estados chave para estas eleições: Michigan, Pensilvânia, Wisconsin e Iowa. Quando, no dia 3, Trump gritar «fraude», o Supremo será chamado a interromper a contagem destes votos. Novamente, os democratas mantiveram-se calados.

A variedade de armas de que Trump dispõe para desferir um golpe contra a democracia são condição da natureza burguesa dessa mesma democracia. Trump não é, pois, um elemento externo à democracia estado-unidense: é o seu produto natural. Uma democracia em que ganhar as eleições exige milhões de dólares clama por candidatos milionários, assim como uma democracia centrada em aspectos puramente formais convida a candidatos que só são democratas formalmente. Uma democracia que assim é nunca o foi. E um dia aparece mesmo uma galinha gigante.

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