A vitória de Gabriel Boric nas presidenciais do Chile está carregada de euforia à esquerda e de simbolismo pela derrota do legado de Pinochet. Mas também de avisos às dificuldades de governação
“Se o Chile foi o berço do neoliberalismo na América Latina, também há-de ser o seu túmulo”, afirmou, no discurso de vitória, Gabriel Boric, eleito contra o candidato pinochetista de extrema-direita José Antonio Kast.
Boric, 35 anos, é um ex-líder e activista estudantil, entretanto eleito deputado ao Parlamento com a Apruebo Dignidad (AD), frente de coligações de esquerda, de que fazem parte, entre outros, o Partido Comunista do Chile, partidos regionalistas, e a esquerda cristã. É o mais jovem presidente da América Latina e o mais votado de sempre em eleições no Chile.
À esquerda, euforia
Esta eleição coroa 2021 como um ano de transição no Chile. As revoltas sociais e económicas de 2019 que levaram à rua milhões de chilenos em protesto, resultaram nas cedências do presidente Sebastián Piñera para a eleição de uma Assembleia Constituinte, com o intuito de redigir uma nova Constituição que enterrasse a herdeira da ditadura de Pinochet, ainda vigente. É esta Constituição que Boric terá de negociar para um plebiscito no Outono de 2022.
Em 2021, o Chile elegeu uma Assembleia Constituinte (pela primeira vez com total paridade de género e eleitos representantes dos povos indígenas), assistiu a profundas mudanças nas eleições regionais (Irací Hassler do Partido Comunista chileno tornou-se presidente da Câmara de Santiago), e duas câmaras do Parlamento (onde a direita obteve a maioria).
2021 foi também um ano de grandes transições à esquerda na América Latina: o sindicalista Pedro Castillo venceu a presidência do Peru (não sem enorme pressão da herdeira de Fujimori para impugnar o resultado; e aos quatro meses de mandato, enfrenta já um processo de destituição por alegada “incapacidade moral”); Xiomara Castro foi eleita nas Honduras pela coligação de esquerdas oposta ao golpe de 2009; o sandinista Daniel Ortega voltou a vencer na Nicarágua; e nas regionais venezuelanas, o PSUV confirmou a popularidade em 45% dos municípios. Com o regresso do MAS ao poder na Bolívia no final de 2020 (após o golpe de Estado contra Evo Morales em 2019) a América Latina está claramente a virar à esquerda.
E em 2022, há eleições no Brasil e na Colômbia, onde tanto Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores) como Gustavo Petro (coligação progressista de esquerda, Colômbia Humana) estão destacados para vencer, e transformar o legado catastrófico, económico, social e pandémico, dos ultra-liberais Jair Bolsonaro e Iván Duque.
Cedências e cautelas
As reacções à vitória de Boric não se fizeram esperar. A BBC Mundo perguntou de imediato que papel teriam os comunistas no futuro governo, jogando abertamente com o fantasma do golpe de 1973 e sugerindo que o Chile se tornará na “próxima Venezuela”.
Dias antes, o site financeiro Bloomberg noticiava uma fuga de capitais do país andino: 8.8 mil milhões de dólares no primeiro semestre de 2021, mais de 24.3 mil milhões desde 2019, valores equivalentes a 9% do PIB/ano. O Financial Times deu conta da queda histórica do peso chileno e da bolsa de Santiago (sobretudo nas empresas de lítio e água, ambas privadas).
Os “mercados” parecem não simpatizar com Boric e com o seu discurso sobre saúde, educação e habitação públicas, nacionalização das pensões e distribuição da riqueza, mas para aprovar a nova Constituição, e para conseguir governar, o futuro presidente vai ter de fazer concessões aos conservadores.
Na New Left Review, a cientista política Camila Vergara, lembrava que Boric tem sido tanto elogiado como criticado pela “atitude conciliatória face à direita”. Enquanto deputado, aprovou a lei “anti-barricada”: “Criminalizou o protesto, impondo penas de prisão entre dois meses e cinco anos para aqueles que ocupam espaços públicos ou constroem barricadas. Mais tarde, desculpou-se por apoiar a reforma, admitindo que deu mais poder arbitrário à polícia e aos juízes, mas recusa-se a apoiar o perdão para aqueles que foram presos”, escreve Vergara. A sua vitória, diz, “muito provavelmente será uma reconfiguração das forças estabelecidas, com o objetivo de implementar o que Boric chama de ‘transformação responsável’, que eclipsa as energias radicais desencadeadas em 2019”.
No dossier de Dezembro sobre a América Latina, a revista Tricontinental lembrava que, apesar das mudanças no continente, os mecanismos da ofensiva da extrema-direita reacionária, e as suas configurações mais ou menos neo-fascistas, não cessaram: aliados das bancadas conservadoras evangélicas, do discurso de ódio, do grande capital extractivista, do agro-negócio e do minério, da “mão invisível” das conspirações alimentadas pela nova tecnologia e pelo algoritmo, esta foi uma década em que “Washington aumentou os seus níveis de intervenção, sofisticou os seus métodos e alcançou o seu objetivo de desestabilizar o progressivo equilíbrio de poder na América Latina.”