Internacional

Donbass

Chovem bombas em Donetsk

Petrovsky é um dos bairros de Donetsk mais próximos da linha da frente. Não há um único dia em que não haja um bombardeamento sobre esta zona da cidade. A população e as autoridades acusam as forças ucranianas de atingir alvos civis.

Arrancamos a cerca de 140 quilómetros por hora em plena cidade. “Tem calma contigo, Fittipaldi”, digo em português. Esboça uma gargalhada. Não entende praticamente nada mas percebe que falo do ex-automobilista brasileiro. De nada serve. Deve ter achado que era um elogio. De vez em quando, vamos em contra-mão. De boné em riste, faz gincana a tudo o que nos apareça à frente.

Tem tudo para ser um aficionado do tunning. Este rei do asfalto, que rasga tudo à sua frente, ultrapassando buracos, carros, motas, tanques, cães e idosas, chama-se Stas, abreviatura para Stanislav. A guerra interrompeu-lhe os estudos para piloto da marinha mercante em Mariupol e agora faz do volante um leme para guiar jornalistas aos lugares mais quentes da maior cidade do Donbass.

Vamos a caminho de Petrovsky, um dos bairros mais próximos da linha da frente. Tão perigoso que as potentes colunas de Stas não conseguem abafar o som das explosões. Tão perigoso que não há praticamente uma casa que não tenha sido atingida alguma vez desde que a guerra civil começou em 2014.

Petrovsky é um cemitério de edifícios destruídos. É domingo e não há vivalma nas ruas. Enquanto contornamos uma rotunda, vemos um carro de capot aberto e um casal a tentar pôr a viatura a funcionar. Estamos a menos de quatro quilómetros das posições ucranianas. “Que raio de sítio para se ficar empanado”, penso.

Vamos a caminho de uma escola que foi atingida por um rocket na zona mais próxima da linha da frente. Os dedos das mãos não chegam para contar a quantidade de estabelecimentos de ensino atingidos pela artilharia ucraniana que visitei desde março. Há alguns dias, Denis Pushilin, presidente da República Popular de Donetsk, reconhecida até ao momento somente pela Rússia e alguns países aliados, anunciou que ao contrário da maior parte da região as escolas de Donetsk não iam abrir no primeiro dia de setembro.

Estamos num bairro de típicas vivendas baixas com quintal a dois quilómetros das forças ucranianas. Apesar das explosões como som de fundo, peço ao Stas para parar o carro e deixar o motor a trabalhar. “Parece que hoje vai chover”, digo-lhe. Nos primeiros meses da guerra, quando ouvíamos rebentamentos era o que dizíamos em tom de piada para amortecer o medo. Do outro lado da rua, há uma casa em chamas. Ajeito o colete, atravesso a estrada e tento perceber o que se passou. Talvez haja alguém ferido.

Há uma parte da parede que se desmorona enquanto ouço o barulho da madeira a crepitar. O chão está tão quente que, apesar do calçado, sinto calor nos pés. Procuro por todas as partes. Não há ninguém. Passado um pouco, vejo um jovem num caminho de terra batida. Olhamo-nos intrigados. Ele porque eu sou estrangeiro, eu porque o vejo de cerveja na mão como se estivesse a dar um passeio de fim de tarde numa cidade em paz. Sigo-o.

Mais à frente, vejo uma dúzia de pessoas em frente a algumas destas casas térreas. Quando percebem que sou jornalista estrangeiro, acusam a Europa de ser responsável pelas armas que caem sobre os civis em Donetsk. Um homem agarra em pedaços do projétil e diz que pertencem à NATO. “Quando é correm com os ucranianos daqui, porra?”, explode em fúria Natalia Alexandrovna. Está perturbada. Partes da sua casa estão destruídas. Entra pelo portão e passado uns segundos regressa com dois soutiens em farrapos. “Nem isto me deixaram. Não tenho nada”. Em lágrimas, mais de revolta do que de tristeza, mostra-se impaciente com os fracos avanços das tropas russas e da milícia local. São muitos anos a viver junto à linha da frente.

Se para muitos a entrada da Rússia na guerra foi vista com esperança, em fevereiro, o cansaço começa a tomar conta de muita gente que exige mais celeridade em Donetsk. No dia anterior, havia estado numa outra zona do bairro onde Iuri Vladimirovich, de 69 anos, me mostrou uma cratera no tecto da sala que deixava ver a casa do vizinho de cima. O rocket que atingiu esse prédio era militar, mas quem ali vivia era civil. Nesse dia, este idoso não estava em casa. Mas o filho, um amigo e os netos sobreviveram por sorte.

Durante essa manhã, visitara outra casa térrea onde vi o corpo de Vyacheslav Gerasimov estendido no quintal depois de ter sido atingido por um estilhaço de uma granada de morteiro. Os vizinhos apontaram com os dedos para o lado ucraniano e repetiram o que todos dizem: “eles bombardeiam-nos desde há oito anos. Não há forma disto acabar”.

Mais tarde, ainda nesse mesmo dia, visitei o hospital mais perto de Petrovsky. Queria entrevistar o diretor porque o edifício tinha sido atacado. As janelas estavam destruídas e duas enfermeiras estavam feridas. Uma vez mais, uma trabalhadora do hospital apontou o dedo para o lado ucraniano e disse que já tinham sido atacados várias vezes. Enquanto esperava pelo responsável hospitalar, assisti à chegada de um carro a alta velocidade com um homem com as pernas cravejadas de estilhaços. O sangue escorria e foi carregado em ombros para cima de uma maca. Indiferentes à minha presença, deixaram-me assistir aos cuidados médicos. Tinha os genitais em muito mau estado e as pernas cheias de buracos. Este mecânico de automóveis estava a trabalhar quando a oficina foi atingida.

Os olhares são, uma vez mais, de revolta. Depois de deixar a família de Natalia, caminho, finalmente, para a escola primária que queria visitar. Vejo cada vez mais pessoas nas ruas a olhar para os destroços provocados pelo bombardeamento. Em frente ao estabelecimento de ensino, há várias trabalhadoras em lágrimas. Um rocket entrou pela parede adentro e abriu uma cratera. A maioria das janelas tem os vidros destruídos. Sobram algumas enfeitadas com andorinhas de papel.

Quando regresso, Stas está encostado ao carro. “Eles foderam isto tudo. Vamos antes que chova outra vez?”.

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