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Palestina

Olhar a situação na Palestina além da névoa da propaganda

O Ocidente tenta controlar a narrativa, a solidariedade com a Palestina é reprimida e ilegalizada na Europa, os media simples instrumentos da propaganda. O jornalismo não devia dar voz à narrativa do poder ocupante, mas desmontar as mentiras que procuram legitimar um regime de apartheid.

São 75 longos anos de negociações infrutíferas, acordos assinados mas nunca cumpridos e resoluções da ONU violadas vezes sem conta. Desde 1967, o povo palestiniano convive diariamente com vedações, muros, checkpoints e operações militares. Milhares foram mortos pelas forças da ocupação e mais de 800 mil passaram pelas suas prisões.

A continuação da construção de colonatos, a retórica do governo e da extrema-direita que se agrava de dia para dia, os crescentes ataques armados de colonos na Cisjordânia, as cada vez mais frequentes incursões à Mesquita de Al-Aqsa, vêm transformando a Palestina num barril de pólvora. O que aconteceu a 7 de Outubro é o resultado da bomba-relógio instalada pelas forças sionistas radicais, encabeçadas por Netanyahu, no próprio jardim.

Só não se esperava que a bomba detonasse na Faixa de Gaza, uma prisão a céu aberto onde 2,2 milhões de pessoas vivem sitiadas há 16 anos. Nem que os palestinianos conseguissem atacar e tomar tantos postos fronteiriços, bases militares e território, nem que Israel demorasse tanto a recuperar o controlo da situação.

Resistência

Resumir a resistência palestiniana ao Hamas pretende retirar toda a complexidade à realidade palestiniana e criar bases para a legitimação das acções genocidas de Israel em Gaza.

Apesar da preponderância do Hamas e da Jihad Islâmica na operação Inundação de Al Aqsa, iniciada a 7 de Outubro, também nela participam desde o início os braços armados de outras duas organizações seculares palestinianas. Vários outros grupos, na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, apoiam a operação.

Bárbaros e Brutais?

Algo muito vincado é a atroz brutalidade dos ataques. Nos meios de comunicação israelitas, encontramos elementos que permitem olhar além da propaganda.

Logo nos primeiros dias, o Canal 12 (israelita) transmite uma entrevista com Rutam, cuja casa foi invadida por combatentes palestinianos. Ao adverti-los de que só ela e os seus dois filhos estão em casa, um dos combatentes responde-lhe: “Não se preocupe, somos muçulmanos, não vos vamos fazer mal”. Um dos palestinianos até pergunta se pode comer uma banana. O entrevistador fica estupefacto por nenhum incidente se destacar.

Este relato encontra eco nas declarações de Yocheved Lifshitz, israelita, 85 anos, libertada pelo Hamas depois de mais de duas semanas como refém. “[Quando chegámos a Gaza], disseram-nos que acreditam no Corão e que não nos fariam mal. Disseram que nos tratariam da mesma forma que tratam os seus.” Conta o “inferno por que passou” durante o ataque ao kibbutz onde vive e a viagem para Gaza, mas sublinha que os seus captores foram simpáticos, cuidaram dos reféns, medicaram e trataram os feridos e mantiveram o espaço muito limpo. “Comíamos o mesmo que eles comiam.”

Numa entrevista para a rádio pública israelita Haboker Hazeh, uma sobrevivente dos combates no Kibbutz Be’eri partilha a sua experiência. Yasmin Porat relata como os combatentes palestinianos trataram os reféns “de forma humana”, e como uma dezena de reféns foi morta por fogo cruzado. De quem, das forças israelitas? “Sem dúvida”, responde Yasmin. Tanques israelitas até dispararam contra a casa onde os combatentes palestinianos e os reféns se encontravam. Só Yasmin e outra mulher sobreviveram.

Os combates neste kibbutz, tomado durante 18 horas por combatentes do Hamas e da FDLP, ficaram conhecidos como “massacre de Be’eri”. Segundo os media, morreram mais de 100 civis, incluindo mulheres e crianças.

Vítimas civis

Entre 7 e 23 de Outubro, foram mortas em Israel 1400 pessoas, israelitas e estrangeiras. Entre elas, 308 membros das FDI, 10 membros do Shin Bet e 58 polícias. Sabe-se que colonos armados foram dos primeiros a confrontar os combatentes palestinianos que avançavam de Gaza, registando-se baixas dos dois lados.

Das restantes 1024 vítimas mortais, não sabemos quantas eram colonos armados mortos em combate nem quantas foram mortas pelas forças israelitas. A apresentação unidimensional destas mortes como civis chacinados “pelos terroristas do Hamas” lança as bases para equiparar a ofensiva palestiniana de 7 de Outubro ao Holocausto ou ao Estado Islâmico.

Punição colectiva e genocídio

Só tal narrativa desumanizante dos palestinianos pode abrir caminho à aceitação, na opinião pública ocidental, da morte de pelo menos 8000 palestinianos e m três semanas, sobretudo civis, vítimas de bombardeamentos israelitas indiscriminados que destruíram bairros e atingiram hospitais, escolas da ONU, padarias, mesquitas e uma das mais antigas igrejas do mundo. Entre as vítimas mortais da ocupação contam-se pelo menos 3342 crianças, 2062 mulheres, 110 médicos, 59 trabalhadores da UNRWA e 35 jornalistas. 

Israel impôs um bloqueio à entrada de electricidade, combustível, água, material médico e comida em Gaza. A “abertura” do posto fronteiriço de Rafah, após 2 semanas de cerco total, é anedótica, com nem 20 camiões de ajuda humanitária por dia a cruzar a fronteira, quando antes desta última escalada eram 400 camiões diários. Em direito internacional, chama-se a isto punição colectiva, e é terminantemente proibido.

Direito a resistir

A resistência e a luta armada contra uma ocupação colonial é reconhecida pelo direito internacional e está expressamente consagrada. O Protocolo Adicional I (1977) à Convenção de Genebra estabelece que as guerras de libertação são um “exercício do direito à autodeterminação”. Em 1982, a resolução 37/43 da AG da ONU reafirmou “a legitimidade da luta de um povo pela independência, integridade territorial, unidade nacional e libertação de uma dominação colonial ou estrangeira por todos os meios disponíveis, incluindo a luta armada”.

A máscara do Ocidente cai quando o mundo observa os líderes europeus a reiterar o apoio a Israel e ao “seu direito a defender-se”. O movimento de porta-aviões norte-americanos para o mediterrâneo aproxima ainda mais a região, e o mundo, de uma guerra de larga escala.

A colocação do poder ocupante como vítima, e a legitimação da violência sobre a população de Gaza como simples acto “de defesa”, é muito perigosa. As constantes questões sobre a condenação ou não do Hamas, ou qualquer grupo da resistência palestiniana, é uma falsa questão, pois põe o foco na violência do rio que tudo arrasta, e esquece a violência das margens que o oprimem.

Um genocídio está em curso e os governos ocidentais cerram fileiras para defender o apartheid e a ocupação israelitas. Já as ruas dizem que os povos da Europa pensam bem diferente.

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