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Liberdades

Os inimigos segundo Ursula von Der Leyen

A liberdade de opinião no ano em que a Convenção dos Direitos Humanos faz 70 anos

Em discurso dualista, a presidente da Comissão Europeia refere “interferências nefastas” e anuncia “pacote em Defesa da Democracia”.

“Temos a mesma visão do mundo. E temos de mobilizar o nosso poder coletivo para promover o bem no mundo”, disse Ursula von Der Leyen, no discurso da União. A presidente da Comissão Europeia vai mais longe e identifica “infiltrações” dos agentes do mal nas instituições europeias: “Há entidades estrangeiras a financiar institutos que comprometem os nossos valores”, disse Ursula von Der Leyen, numa clara identificação de um suposto inimigo interno: “A desinformação que disseminam já chegou à Internet e às nossas universidades. No início deste ano, a Universidade de Amesterdão encerrou um centro de investigação alegadamente independente que, na verdade, era financiado por entidades chinesas”.

Este discurso de Ursula von Der Leyen deixa até um certo travo a déjà-vu. A 9 de fevereiro de 1950, em plena Guerra Fria, falando no Clube Republicano de Mulheres do Condado de Ohio, em Wheeling, Virgínia Ocidental, EUA, o senador republicano Joseph McCarthy, brandindo na mão um papel, no qual dizia constar uma lista de “205 funcionários do Departamento de Estado, conhecido pelo Secretário de Estado como sendo membros do Partido Comunista” e que, apesar disso, continuavam a trabalhar e a formular a política externa dos EUA, desencadeou um autêntica caça às bruxas. McCarthy nunca mostrou a lista, porque ela acabaria por ser dinâmica; os 205 multiplicaram-se em função de muitas razões políticas e outras. O discurso alimentou a histeria coletiva. A caça às bruxas criara uma lista negra que incluía atores, escritores, compositores. Alguns exemplos são Charlie Chaplin, Orson Welles, Arthur Miller, ou o músico Pete Seeger entre muitos outros. As carreiras de intelectuais brilhantes eram destruídas, empregos perdidos e a prisão foi o destino de muitos.

Aliás, uma recente publicação do Blitz, refere que Pete Seeger, que em 1943 criticou os EUA por deportarem norte-americanos apenas pela sua origem japonesa, foi considerado, pelo FBI, o músico mais perigoso, numa lista que incluía Woody Guthrie ou John Lennon.

Quando Ursula von Der Leyen discursa, não há um papel brandido com uma lista de supostos infiltrados, mas parece haver um padrão semelhante: “Temos de nos proteger melhor de interferências nefastas”; “É por estas razões que apresentaremos um pacote Defesa da Democracia”; “Este pacote permitirá detetar influências estrangeiras dissimuladas e financiamentos duvidosos”; “Temos de as proteger, tanto das ameaças externas como dos vícios que as corroem a partir do interior”. Tal como na época de McCarthy, o contributo da “lista” parece ter sido inegável: a formação do delito de opinião, a perseguição, o incentivo à delação.

No ano em que a Declaração dos Direitos Humanos comemora 70 anos, o músico britânico Roger Waters viu dois dos seus espetáculos na Polónia, agendados para o próximo ano, em Cracóvia, serem cancelados, como reação das autoridades polacas ao facto de o músico e fundador do histórico grupo britânico Pink Floyd ter uma opinião crítica relativamente à narrativa dominante sobre a guerra na Ucrânia.

Roger Waters manifestou-se contra o envio de armas para a Ucrânia, e tem feito vários apelos à paz, designadamente em cartas enviadas a Olena Zellenska, mulher de Volodymyr Zellenskyy, presidente ucraniano, e ao presidente russo Vladimir Putin, e acusa os “extremistas ucranianos” de serem responsáveis pela escalada bélica deste conflito.

Também a liberdade de informação mereceu atenção especial por parte do Conselho da Europa. A 2 de março de 2022, a União Europeia decidiu suspender as atividades de cinco meios de comunicação russos (Sputnik, Russia Today, Rossiya RTR / RTR Planeta; Rossiya 24 / Russia 24 e TV Centre International), por alegadamente “difundir intencionalmente propaganda e realizar campanhas de desinformação, nomeadamente sobre a sua agressão militar contra a Ucrânia”.

Este apagão no espaço da UE dos OCS russos, refere a Conselho da Europa, abrange “todos os meios de transmissão e difusão nos Estados-Membros da UE ou destinados aos mesmos, nomeadamente por cabo, satélite, TV via Protocolo Internet, plataformas, sítios Web e aplicações móveis”.

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