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Cuba: campanha mediática acorda o fantasma da crise social

Os protestos de Julho em Cuba foram inéditos, alimentados por uma campanha mediática internacional que aproveitou o descontentamento com a pandemia e a escassez, fruto de 60 anos de bloqueio.

Há vários meses que se vinham juntando em Cuba os elementos que culminaram na “tempestade perfeita” dos protestos de 11 de Julho (11J), em que centenas de cubanos saíram à rua em várias cidades do país. A economia, estrangulada pelo bloqueio dos EUA há 60 anos e dependente do turismo, assistiu a uma contração do PIB em 11% em 2020, com a paralisação das viagens devido à Covid-19. Cuba vive também a pior conjuntura de sanções desde os anos 90, impostas por Donald Trump, com a suspensão de voos dos EUA e o bloqueio de envios de remessas de familiares.

Em Janeiro, o governo de Diaz-Canel deu início a um novo plano económico que pôs fim às duas moedas e o aumento dos salários. Mas a falta de entrada de capital, bloqueada pelo embargo e a conjuntura pandémica, aliada à impossibilidade de adquirir matérias-primas, medicamentos e comida, levou a um desabastecimento significativo. Imagens de cubanos em grandes filas, prateleiras vazias, escassez de produtos básicos, apagões eléctricos e transportes afetados por falta de gasolina (devido às sanções à Venezuela) acordaram o velho fantasma do Período Especial, a pior crise de que a ilha tem memória desde o fim da URSS.

Cuba parecia ter a situação pandémica controlada: baixa incidência e poucas mortes, comparando com vizinhos latino-americanos. O país, que tem uma indústria farmacêutica substancial, desenvolveu ainda, apesar da escassez de matérias-primas, cinco projectos de vacinas contra a Covid-19, duas delas já aprovadas com sucesso. Mas o processo de vacinação não tem sido célere por falta de seringas (também devido ao bloqueio). E deu-se um agravamento da pandemia com a variante Delta, sobretudo na região de Matanzas.

Estes elementos são comuns a países com economias dependentes de fluxos turísticos e assolados por ano e meio de pandemia, e que têm assistido a protestos, mais ou menos violentos. Mas, ou não estivéssemos a falar de Cuba, aqui às “tempestades” características do Caribe, há que se juntar mais duas: o bloqueio dos EUA e a nova campanha internacional.

Campanha mediática

O 11J foi, segundo analistas, um “alarido”, um “protesto”, um “golpe brando”, uma “manifestação espontânea”. Cuba não via tão grande comoção social desde o Maleconazo, em plena crise de 1994, que levou centenas às ruas de Havana, e que deu início a uma onda migratória balsera para os EUA. Na altura, Fidel Castro foi à rua falar com a população e acalmar os ânimos. Precisamente como fez Diaz-Canel, em San Antonio de los Baños, onde se deram os primeiros protestos.

Mas uma “manifestação espontânea” não acontece em simultâneo em várias províncias do país à mesma hora. Dias antes, as etiquetas #SOSMatanzas e #SOSCuba começaram a circular nas redes (Twitter e Facebook), com vídeos mostrando o suposto caos no hospital de Matanzas. Petições contra o governo e pela urgência de se abrir um “corredor humanitário” para a ilha foram partilhadas por influencers, músicos e artistas cubano-americanos.

O governo cubano e analistas de dados do Twitter desmontaram o ardil, explicando, à semelhança do que acontecera com o golpe na Bolívia que destituiu Evo Morales (2019), como a etiqueta #SOSCuba viralizou nas redes na madrugada de dia 10 com milhares de contas falsas criadas horas antes, que apenas repartilhavam o mesmo tweet provocando o movimento artificial do algoritmo.

Inúmeras reflexões se têm escrito nas últimas semanas em Cuba. Revistas, editoriais, murais de facebook, fios no twitter. Umas próximas de agendas reacionárias da Florida, outras comprometidas com a revolução; de anónimos com vontade de se expressar, ou de intelectuais e artistas famosos. Para um país de que normalmente se diz que não há liberdade de expressão, nem debate ou participação política ativa, estas análises só têm servido para o desmentir.

O diretor da Revista Temas, Rafael Hernández, explica que “não houve antes um momento como este em termos de liberdade para criticar o governo, nas redes sociais, mas também nos meios públicos, nem para aceder a informação de fontes muito diversas, incluindo as da oposição”.

Projeto de futuro

Na Alma Mater, revista da Universidade de Havana, jovens universitários publicaram uma das mais complexas leituras do 11J: “Não há nada de casual nem na campanha mediática que antecedeu, nem na simultaneidade dos protestos. (…) Os operadores da reação conseguiram ativar politicamente uma massa considerável de cidadãos de diferentes localidades. E conseguiram ativá-los naturalmente sob a sua própria agenda reacionária”, diz Iramis Rosique.

O editorial da revista digital Tizza, dirigida por jovens comunistas, explica a orquestração: “Os que saíram em protesto contra o Estado e o socialismo em Cuba eram povo. (…) [Mas] este sector mais marginalizado do povo foi ativado por uma agenda política da contra-revolução. Esta soube catalisar o seu mal-estar e projetar o seu desejo como desejo capitalista.”

O 11J não foi “um confronto entre Estado e povo, mas um confronto entre projectos distintos de futuro”, diz Ernesto Teuma. É a revolução enquanto projeto de futuro que sublinha o editorial da Tizza, advertindo aqueles que veem hoje em Cuba uma espécie de Báltico, Berlim ou Praga. Dois projectos se confrontaram no 11J: um que “que se rendeu à agenda dos que sempre pretenderam fazê-los render por fome e necessidade (…) e que estão dispostos a renunciar à soberania e ao socialismo”; e outro que não está disposto a renunciar “nem ao projeto revolucionário que construiu durante gerações, nem à legalidade da Constituição socialista que votaram democraticamente, nem na sociedade emancipada que imaginam no seu futuro”.

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