Há 60 anos, começava aquele que, para muitos historiadores, foi o annus horribilis do Estado Novo: 1961. Logo a 4 de Janeiro dava-se a revolta dos trabalhadores rurais da companhia do algodão, na Baixa do Kassange, Angola, reprimidos pelo exército português em retaliação; o assalto ao paquete Santa Maria, a 22 de Janeiro, pelo golpista Henrique Galvão; o assalto do MPLA à prisão de Luanda, a 4 de fevereiro, seguindo-se os massacres do 15 de Março, da UPA no norte de Angola. Estava lançada em várias frentes a guerra colonial que só terminaria em consequência do 25 de Abril de 1974.
Estes acontecimentos seguem um rastilho acesso em África pela onda descolonizadora que alastrou a todo o continente no final dos anos 50. A pressão das Nações Unidas no pós-Guerra e as experiências de descolonização violentas, como na Argélia, onde a Frente de Libertação Nacional levava já anos de guerra contra os colonos franceses (desde 1954), empurraram o Congo belga para uma transferência de poder, só aparentemente pacífica, em 1960.
Mais de 10 milhões de congoleses morreram em trabalhos forçados e escravizados durante o reinado de Leopoldo, que acumulou, à época, mil milhões de dólares em fortuna em contas na Suíça.
O domínio belga do Congo, actual República Democrática do Congo (já se chamou Zaire), foi relativamente curto (80 anos, comparados aos mais de quatro séculos de presença portuguesa na África ocidental) mas profundamente violento. O rei Leopoldo II apoderou-se pessoalmente do segundo maior país de África, sob pretexto de “parar a escravatura”, ali iniciada pelos portugueses no século XV, oficializando a posse na Conferência de Berlim (1885), quando impérios europeus dividiram o continente entre si. Mais de 10 milhões de congoleses morreram em trabalhos forçados e escravizados durante o reinado de Leopoldo, que acumulou, à época, mil milhões de dólares em fortuna em contas na Suíça. Para a extração de óleo de palma, borracha, ouro, cobre, Leopoldo concessionou enormes territórios, rios, florestas ricas em minério, transformando o Congo num sistema de pilhagem organizada que serviu como uma luva aos colonialistas belgas e à neo-colónia que se seguiu. Como lembrou Frantz Fanon, “o bem-estar e o progresso da Europa foram construídos com o suor e os cadáveres de negros, árabes, índios” e a “riqueza que a sufoca é a que foi roubada dos povos subdesenvolvidos”.
Neste contexto nasceu Patrice Lumumba em 1925, numa família de educação católica. Era um évolué (assimilado, no sistema colonial português). Na capital, Léopoldville (actual Kinshasa), foi funcionário dos Correios e depois tesoureiro. Tornou-se presidente regional de um sindicato inteiramente congolês de trabalhadores governamentais. Visitou a Bélgica a convite do Ministro das Colónias, em 1956, e no regresso, foi preso por alegado desvio de fundos nos Correios. Saído da prisão, o seu activismo político intensificou-se: fundou em 1958 o Movimento Nacional Congolês (MNC), o primeiro partido político nacional. Nesse ano, participou na Conferência de Todos os Povos Africanos, em Acra, Gana, organizada pelo recém-empossado Kwame Nkrumah, que juntou líderes de países africanos independentes e outros que começavam processos de libertação. A partir de então, Lumumba adoptou a postura de um militante nacionalista anti-colonial, em defesa do pan-Africanismo supra-étnico e da independência do Congo.
Caos e desordem
Fanon escreveu que “a descolonização que se propõe mudar a ordem do mundo é, obviamente, um programa de desordem absoluta”. E o que se seguiu entre Maio de 1960 até ao assassinato de Lumumba, em Janeiro de 1961, é precisamente um programa de desordem absoluta, instaurado pelos seus inimigos políticos, pelo governo belga, pelos Estados Unidos e a CIA, e pelas próprias Nações Unidas, para manter no Congo a ordem do mundo como o colonialismo a desenhara.
Apesar da vitória do MNC nas eleições de Maio de 60, uma série de golpes e contra-golpes sucederam-se, impedido Lumumba, primeiro-ministro, de formar o governo que pretendia. Ainda assim, o dia da independência chegou a 30 de Junho, com visita do rei Balduíno e em clima de “cordialidade”.
“Embora a independência do Congo seja hoje proclamada em acordo com a Bélgica, (…) nenhum congolês jamais esquecerá que a independência foi conquistada na luta”
Balduíno elogiou o trabalho “de génio” de Leopoldo II, descrevendo o fim da era belga no Congo como o culminar da sua “missão civilizadora”, e transmitiu desejos de uma relação estreita entre os dois países. Lumumba, que não estava destacado para falar, improvisou o discurso que fez soar todos os alarmes. Lembrando a audiência e a imprensa estrangeira que a independência do Congo não tinha sido “concedida” pela Bélgica, disse: “Embora a independência do Congo seja hoje proclamada em acordo com a Bélgica, um país amigo, com o qual estamos em igualdade de condições, nenhum congolês jamais esquecerá que a independência foi conquistada na luta, uma luta perseverante e inspirada que se desenvolveu diariamente, uma luta na qual fomos intimidados pela privação ou pelo sofrimento e não poupámos a força nem o sangue. Cheia de lágrimas, fogo e sangue. Estamos profundamente orgulhosos de nossa luta, porque foi justa, nobre e indispensável para acabar com a escravidão humilhante que nos foi imposta. Essa foi a nossa sorte durante os 80 anos de domínio colonial e as nossas feridas são demasiado recentes e dolorosas para serem esquecidas.”
A revista Time classificou o discurso de “ataque venenoso”. O Ocidente viu nele um “apelo às armas”. É assim, dizia Fanon, que “a apoteose da independência é transformada na maldição da independência, e o poder colonial, através do seu enorme poder de coerção, condena a jovem nação a regredir.” As repercussões fizeram-se sentir de imediato, sobretudo na hostilidade crescente dos congoleses face aos belgas. Motins no exército e a debanda de funcionários belgas mergulhou o país no caos.
De seguida, a província de Katanga no sudeste, anunciou a secessão. A companhia mineira anglo-belga UMHK, de onde saíra 75% do cobre para armas da Segunda-Guerra e o urânio para a bomba de Hiroshima, juntou-se aos separatistas e apoiou o golpe. Já então, Katanga tinha (como hoje) das maiores reservas de cobre, cobalto e tântalo do mundo – minérios essenciais para motores, tubagens, maquinaria industrial, electrónica e telecomunicações. Lumumba pede a ajuda da ONU para garantir a ordem, sobretudo no Katanga onde as tropas belgas apoiavam os secessionistas. Mas os capacetes azuis serviram sobretudo para a “manutenção da paz” e recusaram-se a intervir na província. Encurralado e a perder o controlo do país, Lumumba chamou a União Soviética. A CIA responde: “Se Lumumba continua no poder, o resultado será no mínimo caos e no máximo a eventual tomada do poder pelos comunistas,
A troca de mensagens entre o representante da CIA no Congo (onde também estava Frank Carlucci, depois embaixador em Portugal após 1974) e o diretor nos EUA, no Verão de 60, mostra que a criação de Lumumba como inimigo estava consolidada“Patrice Lumumba nasceu para ser um revolucionário, mas não tem qualidades para exercer o poder uma vez tomado. Mais cedo do que tarde, Moscovo tomará as rédeas. Ele acha que consegue manipular os soviéticos, mas são eles a mandar.” A CIA responde: “Se Lumumba continua no poder, o resultado será no mínimo caos e no máximo a eventual tomada do poder pelos comunistas, com consequências desastrosas para o prestígio das Nações Unidas e os interesses do mundo livre. A sua retirada deve, por isso, ser um objetivo urgente e prioritário para si.” Os belgas concordavam no diagnóstico: “Lumumba pessoalmente não é mais do que o agente de uma execução gigantesca manipulada pelo Leste” e alertavam para os EUA que, no Congo, se veriam a braços com uma situação “semelhante à de Castro ou pior”.
Em Setembro, o jovem coronel afecto a Lumumba, Joseph Mobutu (mais tarde conhecido como Mobutu Sese Seko), anunciou uma “revolução pacífica” que era, efetivamente, um golpe de estado. Meses depois, a ONU reconheceu a delegação enviada por Mobutu à Assembleia Geral. Acusado de incitar uma rebelião contra o novo líder, Lumumba foi preso. Em Janeiro de 1961, foi enviado para Katanga e recebido pelas forças belgas e separatistas.
O seu corpo foi enterrado e depois, sob ordens dos belgas, que não queriam vestígios nem campa, foi desmembrado e dissolvido em ácido sulfúrico.
Quem matou Patrice Lumumba?, pergunta 60 anos depois, a Radio France Internationale, que tem publicado uma série de trabalhos sobre o congolês. “O assassinato do nacionalista congolês em 17 de janeiro de 1961 perto de Lubumbashi, foi a acção coletiva de uma ‘associação de criminosos’. A responsabilidade pelo crime é partilhada entre quatro grupos de actores, que agora estão bem identificados. Cada um fez o seu papel: o americano patrocinou, o belga apoiou, o grupo de Mobutu comandou e o grupo de Tshombe atuou. Neste crime, há treze personagens.” Sabe-se que Lumumba foi torturado, antes de ser executado. O seu corpo foi enterrado e depois, sob ordens dos belgas, que não queriam vestígios nem campa, foi desmembrado e dissolvido em ácido sulfúrico. O anúncio oficial da sua morte só foi feito a 13 Fevereiro de 1961. Com ele, morreu também o sonho de um Congo unido, democrático, etnicamente plural e pan-Africanista.