Internacional

Colômbia

Ser de esquerda na Colômbia é “viver debaixo da sombra de um caixão”

O assassinato policial de um cidadão comum, depois de receber várias descargas de uma pistola elétrica e de ser torturado numa esquadra, serviu de rastilho para violentos distúrbios em Bogotá e outras cidades da Colômbia. Foi a enésima revolta popular num país fustigado por uma violência praticamente centenária. Durante os protestos, no princípio de setembro, as autoridades colombianas mataram 14 manifestantes.

A Colômbia é o principal aliado dos Estados Unidos na América Latina, facto que ajudará a compreender por que motivo nunca é objeto de críticas por parte do Ocidente, apesar do histórico de terror: durante anos, encabeçou a lista de países com maior número de assassinato de sindicalistas e jornalistas e continua à frente das nações com mais refugiados internos.

Orgia de violência

Desde o massacre das bananeiras, promovido contra grevistas em 1928 — episódio referido em Cem Anos de Solidão, obra maestra de Gabriel García Márquez — ao assassinato do antigo candidato presidencial liberal, Jorge Eliécer Gaitán, a Colômbia insurge-se ciclicamente contra o despotismo e a violação dos direitos humanos por parte da polícia e do exército a mando de governos das oligarquias. Nas últimas semanas, numa orgia de violência, foram registados vários massacres por todo o país contra a população e ativistas sociais, por parte de grupos paramilitares, perante a apatia do governo de Iván Duque.

“Guerrilheiros mataremos, o seu sangue beberemos, as suas mulheres violaremos e os seus filhos queimaremos”, assim obrigavam Omar Rojas Bolaños e outros recrutas a cantar quando corriam na escola militar. Durante uma entrevista, em junho de 2019, este explicou que, durante 31 anos, trabalhou na Polícia Nacional, um corpo policial militar do qual se reformou com o grau de tenente coronel. É um dos poucos a denunciar aquilo que ficou conhecido como ‘falsos positivos’, assassinatos extrajudiciais como o que aconteceu no ano passado com Dimar Torres Arévalo, ex-guerrilheiro das FARC, baleado pelo exército, que terá sido surpreendido pela população a tentar enterrar o corpo. Posteriormente, a Semana, uma das principais revistas colombianas, viria a denunciar que os soldados tinham antes pretendido vestir Dimar Torres com o uniforme do Exército de Libertação Nacional, atualmente a maior guerrilha colombiana, para fazer dele um troféu de guerra.

A prática dos ‘falsos positivos’ é antiga e intensificou-se com o governo do conservador Álvaro Uribe Vélez, mentor do atual presidente Iván Duque, que está em prisão domiciliária por ter tentado corromper testemunhas contra o destacado senador de esquerda Iván Cepeda, filho do histórico comunista assassinado, Manuel Cepeda.

Durante os dois mandatos de Uribe, entre 2002 e 2010, milhares de civis foram executados em segredo para serem apresentados como vitórias sobre as guerrilhas. O escândalo rebentou quando vários familiares de civis denunciaram esta prática.. Descobriu-se então que as forças armadas premiavam os soldados que mais baixas conseguissem em combate, “incentivo” que espoletou os falsos positivos. Vários relatos da época na imprensa denunciaram que muitos dos assassinados eram jovens de bairros pobres, aliciados para supostas entrevistas de emprego das quais nunca voltavam. Os corpos vinham a ser “encontrados” noutras zonas da Colômbia como sendo guerrilheiros abatidos.

De acordo com números divulgados pelo El País, 8 mil colombianos terão sido assassinados, sobretudo, nesse período. O jornal espanhol afirma que os dados são “especialmente incríveis” se comparados com o número de assassinatos e desaparecidos durante a ditadura de Pinochet. No Chile, num período de 17 anos, foram executadas 3200 pessoas.

Onde ser opositor é desafiar a morte

Foi precisamente durante a presidência de Álvaro Uribe que Alexandra Rochi, ex-guerrilheira, se tornou combatente das FARC. Era muito jovem quando fugiu com os pais para San Vicente del Caguán dos paramilitares, exércitos para-estatais de extrema-direita com profundas ligações ao Estado e aos narcotraficantes. Ali foram recebidos e protegidos pelo comandante Mono Jojoy. Anos mais tarde, como contou à Voz do Operário, Alexandra decidiu tornar-se guerrilheira. “Ninguém nasce com genes de guerra mas às vezes há situações que te obrigam a pegar em armas. Eu sou vallecaucana, do ocidente do país, e quando era criança até queria ser polícia”, recordou. Mas a ex-guerrilheira diz que a “democracia colombiana” é sustentada “pela oligarquia de sempre” e que ser de esquerda naquele país significa “andar sempre debaixo da sombra de um caixão”.

Para além dos ‘falsos positivos’, têm sido assassinadas centenas de ativistas políticos e ex-guerrilheiros que confiaram nos acordos de paz assinados em Havana entre as FARC e o governo colombiano. Só este ano, o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e para a Paz (Indepaz) já contabilizou 230 mortos, praticamente um por dia, e, desde 2016, já foram assassinados 228 ex-guerrilheiros das FARC. Mulheres e homens que confiaram num Estado que prometeu protegê-los e acabar com a perseguição política.

São números que provocam arrepios e que fizeram já com que muitos ex-combatentes das FARC se reorganizassem e se escondessem nas montanhas e selvas do país. Em poucos anos, regressam os tempos de chumbo em que ser de esquerda, para outros, significa escolher o caminho do exílio.

De acordo com o El País, 8 mil colombianos terão sido assassinados nos últimas duas décadas.

Artigos Relacionados