Internacional

Palestina

O novo governo de Israel e a aparência de democracia

À hora em que estas linhas começam a ser escritas, quinta-feira, 26 de Janeiro, o exército israelita tem em curso uma operação militar de larga escala no campo de refugiados de Jenin, no território da Margem Ocidental do rio Jordão ocupado em 1967. Por ora, o balanço cifra-se em 9 mortos, mas o número e gravidade dos feridos torna provável que esse saldo aumente de forma ainda mais trágica. Antes deste ataque e, só desde o início do ano, 20 jovens palestinos haviam já sido assassinados pelas forças militares de Israel.

Para quem acompanhe de forma menos atenta a situação na Palestina, é fácil atribuir esta violência à tomada de posse do novo governo do país, a 29 de Dezembro último, chefiado uma vez mais por Benjamin Netanyahu, desta vez à cabeça de uma coligação de partidos de extrema-direita. Não fosse dar-se o caso de 2022 ter já sido considerado pelas Nações Unidas como o ano mais sangrento, desde 2005, altura em que começou a fazer o registo sistemático das ocorrências nos territórios palestinos ocupados em 1967. Assim, o ano transacto fechou com a cifra de 220 mortos (167 da Margem Ocidental e Jerusalém Oriental e 53 de Gaza), incluindo 48 crianças. A isto haverá que acrescentar as inúmeras demolições assim como as revogações de autorizações de residência. Estes números trágicos servem para colocar em perspectiva o impacto da constituição do novo governo de Netanyahu.

É voz corrente, também por cá, que a subida ao poder de homens como Itamar Ben-Gvir ou Bezalel Smotrich, com o seu discurso abertamente racista e misógino, ou que os planos do novo governo para introduzir legislação que anule a independência do Supremo Tribunal em Israel, conferindo ao parlamento a possibilidade de, por maioria simples, revogar decisões de inconstitucionalidade tomadas pelo Tribunal, põem em causa a democracia em Israel.

O episódio recente da demissão do governo de Aryeh Deri, líder do partido Shas, aliado muito próximo de Netanyahu, determinada pelo Procurador-Geral na sequência de uma determinação do Supremo Tribunal em resultado da sua condenação por fraude, tornou ainda mais evidente o quadro de crise institucional que hoje se vive em Israel. A este propósito, importa recordar que o próprio Primeiro-Ministro está acusado de fraude, suborno e abuso de confiança em vários processos judiciais e que a sua sobrevivência política depende, em larga medida, da capacidade que o seu governo tiver para bloquear as consequências de uma sua mais que provável condenação.

Há poucos dias, um dos mais importantes think tanks do aparelho de segurança de Israel, o Institute for National Security Studies, sediado na Universidade de Tel Aviv, considerava, no seu relatório anual, que a maior ameaça estratégica que se coloca a Israel durante o ano de 2023 é a possibilidade de deterioração do quadro de relações externas e muito em especial com os EUA, em resultado dos planos do novo governo para enfraquecer o poder judicial, instigando o clima de polarização social e pondo em causa a democracia no país.

Não deve desvalorizar-se a natureza agressiva, xenófoba e fascizante das forças políticas neste momento no governo em Israel e o potencial de risco que acarretam para a paz na conturbada região do Mediterrâneo Oriental. Dito isto, importa, ao mesmo tempo, observar as continuidades profundas que a espuma dos dias dissimula. Por estes dias, decorre o maior exercício militar conjunto de sempre entre as forças militares dos EUA e de Israel, designado Juniper Oak 23.2, envolvendo um porta-aviões, várias classes de caças da força aérea de ambos os países e bombardeiros com capacidade nuclear. Logo após a tomada de posse de Benjamin Netanyahu, a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen felicitou o novo Primeiro-Ministro de Israel e expressou o desejo em trabalhar para o “reforço da nossa parceria”.

Na verdade, os termos daquele debate, mesmo dentro de Israel, desenrolam-se sobre um equívoco que é a própria definição de Israel, inscrita na declaração de independência e actualizada posteriormente nas chamadas leis básicas, como estado “judaico e democrático”, em si mesmo, uma contradição nos termos. A menos que a democracia seja compatível com a limpeza étnica de um território, a inscrição no ordenamento jurídico da discriminação de pessoas com base nas suas origens nacionais, assim como da prisão arbitrária e da tortura, e com a ocupação e colonização de territórios pela força, em violação aberta da carta das Nações Unidas e de centenas de resoluções das Nações Unidas.

Entre os que, dentro de Israel, dispensam a ficção de democracia para a realização plena do objectivo de limpeza étnica e de colonização de toda a Palestina e os que a entendem como condição instrumental necessária para a prossecução daquele mesmo objectivo, haverá, como sempre houve, divergências, ainda que a tendência vá cada vez mais no sentido do reforço do campo dos primeiros em relação ao dos segundos. A política em Israel tem seguido, aliás, um ciclo contínuo que transforma o extremista de hoje no centrista de amanhã numa deriva de extrema-direita contínua, ao ponto de o Partido Trabalhista, o mesmo que governou Israel até ao final da década de 1970, que levou a cabo a Nakba de 1948 e que em 1967 ocupou toda a Palestina, além de territórios da Síria e do Egipto, estar hoje reduzido a 4 deputados no Knesset. Essas divergências terão um impacto maior ou menor nas relações externas de Israel, em particular nas suas alianças estratégicas, consoante o seu governo se posicionar, designadamente face ao desenrolar da guerra na Ucrânia. Em nenhum caso irão em ponto de, por si mesmas, questionar a iniquidade da política de Israel.

O novo ministro da segurança de Israel, Itamar Ben-Gvir, pôs em marcha um plano de relocalização dos palestinos presos nas prisões de Israel, de forma a impedir os contactos com as famílias e a dificultar as redes de solidariedade dentro das cadeias e a organização das suas lutas. Foram anunciados novos procedimentos que visam limitar o acesso e a estadia de estrangeiros nos territórios ocupados em 1967, de forma a acentuar o isolamento dos palestinos em relação ao mundo e a quebrar a solidariedade com a sua causa. Sucedem-se os anúncios de demolições – a aldeia de Al-Araqeeb no deserto de Naqab (Negev em hebraico) foi, recentemente, destruída pela 212ª vez – prisões, agressões e operações militares como a desta manhã em Jenin, planos para a construção e alargamento de colonatos em especial na chamada zona C. Nenhuma destas medidas e acções pesa no debate interno sobre a “democracia” em Israel, nem levou os EUA ou a União Europeia a questionar os termos das suas relações com o governo daquele país.

Dia após dia, o povo palestino enfrenta a máquina repressiva de Israel em meio de uma generalizada complacência da comunidade internacional. Pequenos gestos – como a aprovação recente, na Assembleia Geral da ONU, da resolução nº 77/400 que solicita ao Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, a apreciação sobre as implicações da política de ocupação e colonização por Israel dos territórios ocupados em 1967 – ainda que politicamente relevantes, revelam-se tíbios face à extrema violência do quotidiano a que o povo palestino é submetido. Mesmo assim, dia após dia, a resistência cresce e não deixa de renovar-se, com a esperança sempre viva que a libertação chegará um dia.

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