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Palestina

“Israel não me deixou ser criança”

Foi detido e torturado quando era criança. Na Cisjordânia, onde Israel lhe roubou a infância, aprendeu na escola das ruas que sem resistência a Palestina não tem futuro. Hoje, vive em Lisboa mas as memórias mantêm-se intactas. Quando fecha os olhos, lembra-se do cheiro da terra e dos olivais a perder de vista. Diz que é do seu povo que mais falta sente. E não tem dúvidas: de que Jerusalém é a capital da Palestina e de que a ocupação e a paz são incompatíveis.

A 14 de março de 1978, 25 mil soldados israelitas invadiram o sul do Líbano para atacar as zonas de influência da Organização de Libertação da Palestina (OLP). A agressão militar provocou cerca de 2 mil mortos, entre libaneses e palestinianos, e 250 mil deslocados. Exatamente uma semana antes, Ashraf Abuhajleh nascia numa cidade cisjordana com pouco mais do que 5 mil habitantes. À conversa com A Voz do Operário conta que Deir Istiya fica perto de Nablus. “É uma localidade histórica porque tem um importante templo cristão. Também é famosa pelas suas oliveiras”. A partir da década de 50, depois da declaração de independência de Israel que conduziu à expulsão de quase um milhão de palestinianos das suas casas, a terra natal de Ashraf transforma-se num dos bastiões do Partido Comunista ao ponto de lhe chamarem Moscovo da Palestina. Desde então, a ocupação e a resistência marcaram a vida de gerações de árabes que cresceram sob o signo da violência. 

“Ir de casa até à escola implicava assistir a confrontos diários e nós não éramos alheios ao que viviamos. Nós não pudemos ser crianças. A presença de Israel nos nossos territórios é criminosa”, descreve Ashraf. É uma realidade que não mudou muito. Só no ano passado, até agosto, as tropas israelitas mataram sete estudantes e deixaram 284 feridos entre alunos, professores e auxiliares. Segundo um relatório divulgado pelo responsável pela pasta da Educação na Palestina, até esse mês, 634 estudantes e 183 professores foram detidos. O documento revelou ainda que as barreiras militares impediram o leccionamento de 1516 aulas. Ashraf explica que só quem vive determinado grau de violência diária é que pode compreender o sentimento de revolta que germina cedo na consciência dos jovens palestinianos. Lembra-se de quando atirou a primeira pedra contra um blindado israelita. “Cercaram Deir Istiya depois de uma ação da resistência e impuseram o recolher obrigatório. Não podíamos andar nas ruas”, conta. “Depois, perseguiram-me até casa, falaram com os meus pais e acusaram-me de os ter apedrejado. O capitão disse-me que da próxima vez ia preso”, acrescenta. Tinha onze anos.

Arriscar a morte aos onze

Quando rebentou a primeira intifada, em 1987, Ashraf tinha nove anos e assistiu ao levantamento do povo palestiniano contra a ocupação. Sucessivas greves gerais, boicote às instituições israelitas, recusa em pagar impostos a Telavive e a trabalhar nos colonatos e ações da resistência foram a primeira resposta à morte de quatro civis num campo de refugiados em Jabalia. Israel contra-atacou com o envio de 80 mil soldados. O resultado foi brutal. Nesse mesmo ano, morreram 311 palestinianos, 53 deles com menos de 17 anos. Em 1988, a organização Save the Children estimava que 7% dos palestinianos com menos de 18 anos tinham sido vítimas de disparos, bastonadas ou gás lacrimogéneo. Quando o Conselho de Segurança das Nações Unidas condenou o uso de munição real por parte de Telavive contra a população civil, o então ministro da Defesa, Yitzhak Rabin, que viria a receber o Nobel da Paz, ordenou o uso de bastões e afirmou que o exército devia partir os ossos aos palestinianos. Entre 23 e 30 mil crianças tiveram de ser assistidas pelas agressões das tropas israelitas.

“Em plena intifada, comecei a fazer coisas sozinho. Atirava pedras aos soldados, pintava faixas e pichava paredes. Depois, pouco antes dos 12 anos, juntei-me com um grupo de amigos”, recorda Ashraf. Até que chegou o dia que jamais vai esquecer. “Fomos emboscados pelo exército quando alguns camaradas lançavam cocktail molotovs contra tanques israelitas”, descreve. As metralhadoras dispararam mais de 25 tiros contra as crianças palestinianas. Uma delas caiu abatida e a outra foi levada em estado grave para um hospital sob detenção. Para a vida, ficou-lhe a aprendizagem de que um camarada na prisão não denuncia os companheiros de luta. “Ele estava ferido, foi torturado e, ainda assim, não disse um único dos nomes que os israelitas exigiam”, conta.

Preso e torturado aos 13

O grupo de pequenos resistentes continuou a sua actividade contra a ocupação num contexto de insurreição generalizada até os serviços israelitas de inteligência identificarem Ashraf depois de uma acção. Antes, entrara na Frente Popular para a Libertação da Palestina, organização histórica da esquerda palestiniana. Tinha 13 anos quando o avisaram que ia ser capturado. “Eu não queria ser preso. Como a maioria dos jovens palestinianos eu queria continuar a resistir mesmo que isso significasse a morte. Mas por causa da minha família decidi permanecer em casa”, explica. Conversou com os pais e explicou o que estava a acontecer. Olhando para trás, aqueles dias “foram duros” e lembra que “ninguém gosta de ver o filho preso, morto ou ferido”. Dias depois, um enorme aparato militar cercou a casa da família Ashraf. “Puseram um lança-rockets apontado para a casa. Tinham ordens para a demolir como vingança pelas minhas actividades políticas. À última hora, um advogado conseguiu cancelar essa barbárie”, denuncia.

Até ao centro de detenção, ninguém lhe tocou mas mal o jeep parou atiraram-no algemado para cima de umas roseiras. Levava um saco na cabeça e foi arrastado pelo chão até ao detector de metais. “Depois, dois soldados alternavam entre si para me espancar. Foi a madrugada inteira e ainda nem sequer era o interrogatório. Fui insultado e agredido. Mas já sabia que isso ia acontecer. É o que acontece sempre”, descreve. “O interrogatório foi pior. Não fui só insultado. Ameaçaram matar-me e à minha família. Não me davam de comer nem de beber. Obrigavam-me a ficar acordado. Lembro-me que metiam gravações de ópera no volume máximo. Despiam-me, batiam-me e apertavam-me os testículos com força”, recorda. “Apesar de não nos deixarem ter infância claro que eu continuava a ser uma criança. Tinha apenas 13 anos e estava a ser torturado”, denuncia. Ashraf conta, então, que passaram a usar a técnica do polícia bom e do polícia mau. Diziam-lhe que tinham filhos da mesma idade. Que os seus camaradas haviam sido presos e que já tinham falado e se também falasse podia abandonar a prisão. “Pensei no meu companheiro que com apenas 12 anos não tinha dado o meu nome aos torturadores. Isso deu-me força”.

Foi condenado a dez anos de prisão dos quais só cumpriu oito meses graças aos acordos de paz assinados em Oslo que permitiram a libertação de centenas de crianças. Ashraf descreve o cárcere como algo desumano: “Eu era uma criança e estava numa cela cheia de ratazanas e baratas. A sanita era um barril meio caído cheio de excrementos e moscas com um cortinado desfeito”. Quando saiu tinha perdido dois anos lectivos. “Perdi praticamente dois anos porque fui preso no segundo período do 9º ano e fui libertado quando já devia estar no 10º. Felizmente, Iasser Arafat decidiu que as escolas deviam aprovar todas as crianças presas”, acrescenta.

Portugal

Vinte e quatro anos depois, Ashraf vive em Lisboa. Estudou em Aveiro graças a uma bolsa de estudo e diz que os portugueses são um povo simpático e solidário. Apesar de terem passado duas décadas e meia, considera que pouco mudou. Em Portugal, as crianças têm direitos, diz, mas na Palestina continuam a ser mortas, presas e torturadas. “É certo que agora há mais cobertura. Naquela altura não havia redes sociais e era mais difícil denunciar a nossa situação”, recorda. O caso de Ahed Tamimi é importante “mas não é único”. Continua a haver centenas de crianças nas prisões israelitas. Ashraf concorda com a resistência à ocupação “em todas as suas formas” e diz que o que “foi tomado pela força só voltará pela força”. Não porque sejam violentos ou terroristas mas porque têm “o direito reconhecido pela ONU de resistir à ocupação”.

Cercado pelas tropas israelitas

Anan Tanja é outro dos cerca de 70 palestinianos que vivem em Portugal. Na Europa, é um dos principais dirigentes da Fatah, partido da Palestina fundado por Iasser Arafat e de que é responsável no nosso país. Em 1979, nasceu em Belém, considerada pelos cristãos o berço de Jesus Cristo. Foi precisamente na Igreja da Natividade, templo bizantino construído em 325, que Anan se refugiou, em 2002, durante a segunda intifada. Mais de três mil soldados israelitas, 200 tanques e 30 aviões de combate participaram no cerco ao edifício com o objetivo de capturar as dezenas de resistentes palestinianos que se encontravam no interior. 

“Fui ferido e detido ainda na primeira intifada quando era uma criança”, conta à A Voz do Operário. Anos mais tarde, Anan viria a figurar na lista dos mais procurados por Israel. Em Lisboa, conta que o seu sonho é poder regressar à Palestina. “A paz só é possível quando os israelitas aceitarem um Estado palestiniano independente com Jerusalém como capital”, explica.

*Artigo publicado n’A Voz do Operário em 2018.

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