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União Europeia

Refugiados: uma união naufragada

Não se sabe ao certo quem é o autor do proverbial cinismo “a morte de um homem é uma tragédia, a de um milhão é só uma estatística”, mas a sua força, e recorrência, não reside no nome de quem a disse, mas sim na vasta lista de candidatos a poder tê-la dito. Desde 2016, 15 mil pessoas afogaram-se no Mediterrâneo sob o olhar plácido e indiferente da União Europeia: só uma estatística para o capitalismo, 15 000 tragédias para a humanidade.

Foto: ACNUR/Giuseppe Carotenuto

A última tragédia aconteceu no dia 25, a 70 milhas ao largo de Khoms, na Líbia devastada pela guerra imperialista. Uma embarcação em que viajavam quase 300 pessoas virou-se em rota para Itália, fazendo mais de 150 mortos. No telejornal das 8, na RTP, esta “estatística” mereceu exactamente 110 segundos de preocupação jornalística, em contraste com os quatro minutos a seguir dedicados à “dieta paleo”. Fora do telejornal ficaram, por exemplo, as funestas declarações que Sabah Youssef, uma sobrevivente que perdeu o filho de sete anos no naufrágio, fez à Reuters: “Ninguém nos ajudou. Os europeus ficaram a ver-nos morrer. Agora não quero nada a não ser voltar para o meu país, o Sudão, e morrer lá”. Mas nem o último desejo de Sabah se afigura fácil. A UE não se limita a não prestar o obrigatório auxílio aos refugiados que todos os dias morrem na travessia mediterrânica, violando impunemente vários tratados internacionais como a Convenção para a Lei do Mar, a Convenção para o Tráfego Marítimo ou a Convenção de Busca e Salvamento Marítimo. A UE não se limita tampouco, de forma pública e reiterada, a permitir a criminalização das organizações e dos indivíduos que prestam esse auxílio, de que é exemplo a prisão de Carola Rackete, a capitã do Sea Watch 3. A UE arquitetou, financia e servese de uma extensa rede de campos de concentração fora da Europa para onde são atirados os refugiados. É em Tajoura, um destes campos de concentração, que Sabah e outros 83 sobreviventes do naufrágio estão detidos indefinidamente em condições sub-humanas, sem qualquer tipo de acusação ou apoio jurídico. Recorde-se que foi no campo de concentração de Tajoura que, há poucas semanas, morreram mais de 50 refugiados num bombardeamento. Segundo a ONU, nestes campos financiados com os nossos impostos, é comum toda a espécie de atropelos dos direitos humanos, incluindo violações, torturas, venda de escravos e assassinatos. A respeito destas “estatísticas”, as diferenças de posição entre Salvini, Boris Johnson, Macron e Orbán são, elas próprias, de natureza meramente estatística. Arremessando taticamente os números dos acolhimentos uns, jogando demagogicamente com os sentimentos xenófobos outros, todos estão de acordo com a ideia da «Europa Fortaleza» encarnada pela Operação Tritão. Desde que a UE pôs em marcha esta operação militar com um custo de 120 milhões de euros anuais, o número de mortos no Mediterrâneo aumentou 1600%. A filosofia da Operação Tritão expressa um consenso entre os líderes da UE: militarizar o mar, desencorajar e impedir a entrada de refugiados, financiando a sua detenção em campos de concentração na Líbia e na Turquia. Trata-se de uma visão cujos propósitos vão muito mais além do que a frenagem do fluxo de refugiados e imigrantes e encerra uma estratégia de recolonização de África. Uma das pedras angulares desta estratégia foi colocada em Valleta, Malta, em 2015. Nesta cimeira, os líderes da UE e vários dos seus homólogos africanos assinaram um Plano de Acção que, no seu quarto ponto, prevê a “colaboração militar” para “deter a imigração ilegal”. Na esteira desta cimeira, a UE multiplicou exponencialmente o treino, o financiamento e o armamento das forças armadas de vários Estados africanos, incluindo o Sudão, país submerso numa espiral de violência e terceiro principal país de origem de refugiados. Em Cartum, por exemplo, está atualmente a ser instalado, com fundos europeus, o ROCK, ou Centro Regional de Operações, com o objetivo de reforçar a capacidade de resposta militar do regime sudanês. A chamada “crise dos refugiados” está a permitir que a UE, a pretexto do reforço da capacidade dos Estados africanos para fazerem frente à insegurança e ao tráfico de seres humanos, estabeleça relações neocoloniais de dependência com esses Estados. Frequentemente, e o Sudão é disso um bom exemplo, o fortalecimento da capacidade bélica destes regimes apenas contribui para alastrar a violência e a insegurança, levando a que ainda mais pessoas tenham de fugir, mas permite aos europeus voltar a colocar a sua velha bota em terras africanas. Segundo a Agência da ONU para os refugiados, em 2019 o mundo conheceu o maior número de pessoas deslocadas desde que há registos. No total, mais de 71 milhões de pessoas foram obrigadas a abandonar as suas casas. Sendo que, deste número, apenas 25 milhões são oficialmente reconhecidos como “refugiados”, o recorde traduz um preocupante recrudescimento da insegurança, da fome e da guerra no mundo. E a UE, embora ficando atrás da Turquia e do Paquistão no número de refugiados acolhidos, guarda para si a fatia de leão da responsabilidade pela existência de refugiados. A UE participou na criação da guerra na Síria, emissor número um de refugiados do mundo, contribuiu para invadir o Afeganistão, que ocupa o segundo lugar da lista, arma o regime sudanês, que ocupa o terceiro lugar, e inventou uma guerra na Líbia, principal organizador das redes de tráfico humano para a Europa. E se a União Europeia é a mãe da crise dos refugiados, não faz falta um teste de paternidade para saber que o regime dos EUA é o pai. Nenhum império ou qualquer outra forma de grande construção política colapsa sem antes dar sinais de podridão. A complacente indiferença da União Europeia perante as estatísticas dos naufragados não é portanto só um sintoma do seu próprio naufrágio moral, é um aviso à aproximação do seu prazo de validade política.

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