Allende sabia rir-se de si próprio. Diz-se que em determinada altura da sua vida, brincou com as sucessivas candidaturas à presidência antecipando o que poderia vir a estar escrito na sua própria lápide: “Aqui jaz Salvador Allende, o futuro presidente do Chile”. A verdade é que só conseguiu ser eleito na quarta tentativa.

Se os Estados Unidos estiveram envolvidos no golpe militar que levou à morte de Allende e à instauração de uma ditadura fascista que durou quase duas décadas, a verdade é que a CIA já estava atenta ao candidato do costume. Quando se candidatou pela primeira vez, em 1952, enquanto membro do Partido Socialista, a ala anti-comunista daquela organização partidária inclinou-se para o apoio a Carlos Ibáñez.

A tensão desses anos era tão palpável que aquele que viria a ser defensor da via pacífica para o socialismo protagonizou com o também senador Raúl Rettig, do social-democrata Partido Radical, o último duelo que se conhece no Chile. O confronto realizou-se com o recurso a dois revólveres que falharam na hora do disparo.

Um mês depois, Allende não ia além dos 5,44% nas presidenciais. Em 1958, voltou a tentar enquanto candidato dos socialistas e comunistas e chegou aos 28,9%. Quando se apostava na vitória do socialista em 1964, os Estados Unidos decidiram subir a parada e financiaram, de acordo com documentos desclassificados da CIA, a campanha de Eduardo Frei com 2,6 milhões de dólares, outros 3 milhões de dólares foram gastos em propaganda contra Allende.

“Venceremos”

Em 1970, quando ecoam nas ruas do Chile a canção “Venceremos” de Claudio Iturra e Sergio Ortega, pelas mãos dos militantes dos nove partidos de esquerda que integravam a coligação eleitoral Unidad Popular, Allende já tivera que enfrentar uma forte oposição interna no seu próprio partido à sua recandidatura. Depois de três derrotas, os barões do PS preferem apostar noutras figuras e o principal apoio da nova corrida era o Partido Comunista do Chile que tinha avançado com Pablo Neruda como pré-candidato. Sem o apoio do Comité Central dos socialistas, Allende consegue ganhar o apoio do partido graças às bases e o Nobel da Literatura avança ao seu lado na campanha.

Percorrem um país inteiro junto dos trabalhadores e do povo criticando as políticas do governo de Eduardo Frei apresentando um programa com 40 medidas que seriam implementadas em caso de vitória. Para Allende, que defendia uma via democrática e pacífica para o socialismo num país periférico, era a “revolução com sabor a vinho tinto e empanadas” como proclamou num dos seus discursos. A nacionalização da indústria do cobre, a reforma agrária e um conjunto de outras medidas eram propostas que abriam um caminho alternativo ao Chile.

A história trataria de mostrar que a oligarquia chilena apoiada pelos Estados Unidos não permitiria o êxito de tal experiência. Logo durante a campanha, quando a direita não duvidava da vitória do candidato Jorge Alessandri, o general do exército, René Schneider, afirmou que os militares seriam fiéis à constituição em qualquer cenário.

Em 4 de setembro, estala a alegria nos bairros mais pobres do Chile. Salvador Allende alcançava a vitória por uma estreita margem. Com 36,63%, superava Alessandri que obteve 35,29% dos votos, mas a partida ainda não estava decidida. De acordo com a constituição de então, no caso de não haver maioria absoluta de nenhum dos candidatos, a decisão devia ser tomada pelo parlamento, onde os democratas cristãos seriam determinantes.

Logo a seguir ao anúncio dos resultados oficiais, René Schneider volta a prometer a fidelidade dos militares à escolha dos chilenos: “Aceitámos o veredito das urnas. Reconhecemos e apoiamos nestes momentos os dois postulantes à Presidência da República, que são os que obtiveram as duas primeiras maiorias relativas, o senhor Allende e o senhor Alessandri. Legalmente, corresponde ao Congresso Nacional decidir qual dos dois será o futuro Presidente do Chile, e quem aí for eleito devemos apoiar até às últimas consequências”. Não chegaria a ver a confirmação da vitória de Salvador Allende no parlamento.

O cheiro a morte

Para evitar a eleição do candidato da Unidad Popular, a direita lança uma campanha terrorista atribuindo a responsabilidade dos atentados à esquerda. No dia 22 de outubro, depois de várias tentativas, conseguem bloquear o carro de René Schneider e fazem vários disparos. O general agoniza no hospital enquanto se vota no parlamento. Allende consegue o apoio de 153 deputados, Alessandri não vai além de 35. Nova explosão de festa nas ruas do Chile. Horas depois morria René Schneider.

Apesar da manifesta vontade de Salvador Allende em encetar um novo modelo de construção do socialismo, o governo da Unidad Popular começou como acabou: com a intolerância violenta de uma oligarquia incapaz de aceitar a escolha democrática do povo chileno.

Foram mil dias de um governo que introduziu importantes transformações económicas e sociais e mil dias de permanente conspiração e assédio orquestrados a partir de Washington. A conquista de direitos pelos trabalhadores e a possibilidade de escolha de um futuro alternativo foram decepadas a 11 de setembro de 1973 pelo golpe encabeçado por Augusto Pinochet.

Com uma kalashnikov oferecida por Fidel Castro, Salvador Allende decidiu defender até ao último momento o mandato presidencial que tanto sacrifício havia custado aos trabalhadores e ao povo defender. Enquanto aviões bombardeavam o Palacio de la Moneda, o presidente do Chile discursava ao país: “Trabalhadores da minha pátria, tenho fé no Chile e no seu destino. Outros homens superarão este momento cinzento e amargo em que a traição pretende impor-se. Continuem vocês a saber que, mais cedo que tarde, de novo se abrirão as grandes avenidas por onde passe o homem livre para construir uma sociedade melhor”.

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